Onde realmente está o racismo: a verdade que seu tio não vai te contar no Zap da família

Pesquisas recentes mostram que o Brasil começa a se enxergar como um país racista, mas ainda tem dificuldade de identificar ações de racismo. Por outro lado, as recentes notícias sobre a polícia baiana e a operação vingança no Guarujá gritam na cara de todos como e onde identificar o racismo.

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Uma polícia que age por vingança já é por si só uma política medieval. Mas a questão aqui remonta a um passado bem mais recente. Um passado onde um determinado grupo de brasileiros estava disponível para serem torturados e assassinados. A verdade, é que esse passado nunca foi superado. Ao contrário, continua sendo cultivado e mantido. Quer saber como? Me acompanha…

Tem uma cena de Memórias Póstumas, do bom e velho Machado de Assis, que me impressionou muito quando li pela primeira vez, ainda adolescente. No capítulo LXVIII, O Vergalho, Cubas caminhava pelas proximidades do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, quando é interrompido em seus pensamentos pelo burburinho de uma aglomeração. Ao se aproximar, constata: “era um preto que vergalhava outro na praça”.  A cena da ficção de Machado representa o mesmo tipo de práticas fundadoras da estrutura social no Brasil revelada em diversas pinturas do século XIX. Uma delas, uma aquarela de 1822 do pintor australiano Augustus Earle, encena mais um episódio de punição por meio de tortura pública, sob o olhar do senhor. O braço erguido, o chicote voando em direção ao corpo nu e ferido da vítima, o feitor acompanhando de perto a ação.

Pintura de Augustus Earle, Calabouço do Morro do Castelo, Rio de Janeiro. Um homem negro chicoteando outro, feitor observando, pessoas em redor.

Um problema contemporâneo

É lugar comum repetir, como tantas outras frases dessas que as pessoas repetem sem pensar, que também existe racismo entre os negros ou que os negros é que são racistas. Existe verdade nessa colocação? É possível. Mas tem uma questão de linguagem aí. A expressão “é que”. Dependendo do contexto, serve para excluir elementos de um determinado grupo. “Futebol é que é divertido” significa que alguém não gosta tanto de outros esportes. “Nós é que somos patriotas” significa que alguém acha que determinados grupos não deveriam fazer parte da nação. E o que isso tem a ver com a pintura e o livro citados? Saiu uma pesquisa recentemente sobre a percepção das pessoas a respeito do racismo no Brasil. O que impressiona sobre essa pesquisa é uma estranha contradição. Enquanto 81% das pessoas concordam que o Brasil é um país racista, apenas 11% identificam racismo em suas próprias atitudes ou em suas famílias. Quer dizer, 89% das pessoas não enxergam onde e de que formas o racismo se manifesta. Seja por desconhecimento ou por maldade – não sou eu que vou julgar, afinal 89% é muita gente – parece que as pessoas já não veem o Brasil como um país livre de racismo, mas ainda não sabem como identificá-lo.

Se era possível ter alguma dúvida de que o racismo é um problema atual, os últimos anos deixaram as coisas bem claras. O crescimento da extrema direita pelo mundo fez muita gente perder qualquer resquício de vergonha ou medo de expressar sentimentos racistas. O lado bom é que aquela hipocrisia de chamar de brincadeirinha, gozação, camaradagem o que na verdade é agressão, ofensa e exclusão racial tem ficado cada vez mais evidente. Por outro lado, muitas pessoas de fato não sabem exatamente como e onde o racismo se manifesta. Como aquelas práticas tão antigas retratadas no livro e na pintura ainda hoje moldam atitudes, palavras e pensamentos. E onde, muito além da relação interpessoal, podemos encontrá-las. Nesta série de vídeos vamos descobrir onde encontrar o racismo com exemplos práticos para ficar bem claro como se manifesta essa cultura que só traz prejuízos. Principalmente para os grupos que são suas vítimas, mas não apenas para eles, para o país como um todo que sofre também as consequências de manter sua população à margem da cidadania e de se manter à margem do mundo.

Um sistema que se diz neutro

Casa Grande com estruturas à mostra.

É comum as pessoas pensarem sobre o racismo como um desentendimento entre as pessoas. Ou como uma ofensa, um xingamento pessoal. Em muitos casos são pessoas que sequer têm uma relação de autoridade ou de poder tão discrepante, como na pintura. São “gente como a gente”, como se diz. Outras vezes é um personagem de televisão que faz uma gozação, coisa muito comum até poucos anos atrás. Alguns casos mais recentes envolvem torcedores insultando jogadores negros. Fiz um vídeo sobre o Vini Jr, depois confere na página inicial. Eles têm razão em pensar dessa forma, a ofensa pessoal é uma forma de manifestação e as relações interpessoais são um meio importante onde se expressam sentimentos racistas. Tanto é, que o mimimi da década sobre isso é a rejeição a tudo que cheire a politicamente correto.

Mas a coisa vai muito além do âmbito pessoal. Atos de agressão são tolerados porque são compreendidos pelas pessoas não apenas como incidentes interpessoais, mas aleatórios e arbitrários, sem maiores consequências. Como um pequeno desvio de conduta dentro de um sistema supostamente justo e neutro. A sociedade moderna é construída por leis que garantem a igualdade entre as pessoas, mas – infelizmente – acima da lei existe o poder. Isso não é novidade para ninguém e como dizem nossos hermanos: “A justiça é como a serpente, só morde os descalços”. E é justamente a dificuldade de enxergar conexão histórica entre fatos aparentemente ao acaso que constrói a ideia de que não existe essa conexão. Da mesma forma, a dificuldade de ver as vigas e pilares por trás do reboco e do acabamento faz parecer que está na superfície o que, na verdade, é estrutura, tem lastro no passado e forte sustentação no presente. Mas se a gente tenta enxergar por trás do acabamento de igualdade, vamos ver que a suposta neutralidade é um mito e que o sistema que deveria ser justo – e é muitas vezes justo no papel – na prática seleciona pessoas e as separa entre cidadão e não-cidadão de acordo com os mesmos critérios do passado.

O intermediário do poder

Depois de constatar que o homem que torturava outro homem em praça pública era um de seus ex-escravos, Cubas ensaia uma explicação: “Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas – transmitindo-as a outro”. É possível. Por vingança ou por encontrar alguém colocado em situação de maior vulnerabilidade que a sua. Um ato isolado, sem conexões que vão além do ressentimento íntimo de um indivíduo. Porém, ser libertado pelo senhor o coloca em uma situação de poder, embora ainda dentro do sistema criado pelo senhor. Uma relação de poder que convém ao senhor.

Brás Cubas e Prudêncio, personagens de Machado de Assis em estilo quadrinhos.

Gilberto Freyre, racista de carteirinha, achava que o mulato era a prova do amor entre as raças que ele jurava que existe no Brasil. Freyre é o maior responsável pela difusão do mito da democracia racial brasileira. A falsa ideia, repetida até hoje, de que um país desigual como o Brasil, cujas desigualdades são facilmente visualizadas de acordo com o tom da pele, é um país racialmente justo. Para ele, o mestiço é o elemento que dá equilíbrio a essa sociedade justa e igualitária, a engrenagem responsável por balancear e suavizar o antagonismo racial. E é mesmo, mas não do jeito que ele queria. Não como uma relação de amor fraterno. Conceder poder a intermediários é uma forma de se manter no poder.

A pintura retrata uma cena que se passa no Calabouço do Castelo, prisão que existia no forte do antigo Morro do Castelo, no Rio de Janeiro. O Morro do Castelo abrigava as primeiras edificações portuguesas construídas no Rio de Janeiro ainda em mil quinhentos e tal, os mais importantes eram um convento e uma fortificação que ficou conhecido como Castelo e deu nome ao lugar. Além de muitos outros lugares históricos, como a casa onde viveu Machado de Assis, e de uma densa população majoritariamente formada por negros e pardos, o que era comum no Centro do Rio até então. O Morro do Castelo e toda a sua história existiram até o início do século 20, quando foi demolido pelo prefeito Pereira Passos no projeto higienizador que deu origem às primeiras favelas. Mas peraí, o que foi demolido? O convento, o forte, a casa de Machado de Assis? Não, o morro inteiro foi varrido a jato d’água e virou aterro.

Que força tão imensa faz a elite de uma população mover as montanhas de uma cidade e enterrá-la com todos os escombros de sua história? E aí, juntando as ideias de intermediários do poder e montanhas, me ocorre um outro lugar comum: “a polícia brasileira é incorrigível, é impossível, ninguém consegue consertar”. Os grupos detentores de poder, quando interessa, são capazes de mover montanhas e soterrá-las com todas as suas conexões históricas. Se não o fazem é porque têm interesse em manter a estrutura por eles construída como está. A cena se passa no Castelo e a relação que se impõe entre esses dois homens e entre eles e o poder representado pelo feitor, muito bem capturada na troca de olhares entre eles, se perpetua até hoje. O poder, o escravo e o intermediário. E seria ingenuidade – ou seria conveniente? – acreditar que sua repetição contínua no passado teve natureza racial, mas hoje não passa de acaso, coincidência, arbitrariedade. Relações de poder não são obras do acaso.

O sistema de castas virtuais

O fim do regime escravocrata marca também o fim, mais uma vez na forma da lei, do sistema de castas no Brasil. Um sistema de castas é aquele em que as pessoas não têm mobilidade social. Se um indivíduo pertence a uma casta, vai estar condenado a desempenhar as atividades que são permitidas – ou obrigatórias – para a sua casta. Não têm o direito de escolher seus próprios destinos, sua profissão, suas atividades. Seus descendentes estão condenados a esta mesma prisão.

O Apartheid na África do Sul e as leis Jim Crow nos Estados Unidos foram formas explícitas de tentar manter este sistema após o fim da escravidão. Mas não foram as únicas e, para falar a verdade, não foi uma estratégia muito boa, em pleno século XX, separar as pessoas com base na lei. Muito mais eficiente foi, e continua sendo, a estratégia adotada pelas elites econômicas brasileiras que vêm garantindo imobilidade social às massas por meio de desigualdade cultural, econômica e de acesso aos meios e recursos que possibilitariam sua ascensão. “Ah, mas isso é só uma questão de esforço individual”.

Esses grupos sofreram e ainda sofrem com a escravidão, migração forçada, dizimação, negação de acesso a recursos básicos tanto materiais quanto imateriais, marginalização geográfica e social entre muitas outras violências. Em contrapartida, os imigrantes que vieram para o Brasil sob o pretexto de substituir o trabalho negro – o que por si só já um absurdo – tiveram preferência nos postos de trabalho, acesso à educação, acesso a laços sociais na classe média que permitem abrir portas, enfim… Mais uma vez, se coloca na lei a suposta igualdade, mas, na prática, o que as elites econômicas fazem é garantir direitos e privilégios a grupos selecionados pelos mesmos critérios do tempo da escravidão. Além de garantir que qualquer tentativa de sair dessa condição de casta velada seja devidamente reprimida.

Imagens de violência racial do passado e do presente.

A minha pergunta para os 89% que não enxergam o racismo é: que explicação elas dão para esse fenômeno? Se não são as desigualdades causadas e sustentadas pelas elites econômicas e seus intermediários, qual é a sua explicação para o fato de a grande maioria das pessoas marginalizadas em castas não oficiais brasileiras serem descendentes de africanos e indígenas? Eles são incapazes, inferiores?

A morte no horizonte

Se a gente traz de volta a imagem do Calabouço – o escravo, o intermediário e o poder – como um paradigma de sociedade, mas agora em termos de mobilidade social, em termos da manutenção do desejo das elites econômicas de manter grupos inteiros presos em castas virtuais, quem seria o atual intermediário do poder? A classe política, talvez. Pode parecer que eles são o poder em si, e muitas vezes são mesmo, mas em sua grande maioria não passam de intermediários dos verdadeiros acumuladores de poder econômico que são gente muito mais rica e poderosa. Mas é também o cidadão comum que vota e revota nos mesmos representantes desta elite – e isso não é um fenômeno recente, é muito anterior ao bolsonarismo. Não importa a cor da pele, ser autorizado a exercer poder por quem de fato detém poder é sedutor. Mas quando se trata dos objetivos por trás desse esquema, aí sim pele é essencial…

Ver a classe política como intermediários do poder pode ser problemático. O coitado que ganha um chicote para açoitar seu irmão é parte da mesma ralé que ele castiga, já os políticos, não. A polícia, por outro lado, sim, é parte dessa ralé. E fica bem clara essa relação quando se pensa na polícia nesta posição e nas muitas chacinas cometidas no Brasil, outro problema enfrentado pela gente pobre – quase todos pretos ou quase pretos. A morte está sempre muito mais próxima e muito mais presente nas vidas dessas pessoas do que para os verdadeiros cidadãos. Basta ver as estatísticas de encarceramento e morte no Brasil. Vão dizer que eles vão mais para a cadeia porque cometem mais crimes. Mas aí eu volto à pergunta anterior, se cometem mais crimes é porque vivem à margem da sociedade, sem os direitos e vantagens dos efetivamente cidadãos, situação que é construída e sustentada pelas elites econômicas. Se não é por isso, qual é a explicação para a maior criminalidade, encarceramento e morte entre os negros? Se tiverem alguma resposta que não envolva a falsa relação de superioridade e inferioridade entre as pessoas me avisem.

Montagem em que o feitor do quadro de Earle veste um terno moderno e o carrasco usa uniforme da PM.

O racismo é um sentimento e opera no íntimo de cada pessoa. Mas é também uma ferramenta de manipulação. Se vem sendo estimulado ao longo dos séculos é por seu potencial na manutenção das estruturas de poder. As elites que movem montanhas, tiram e botam presidentes, têm poder para manter sob controle as instituições necessárias à manutenção do seu poder e uma dessas instituições é o teatro. É necessário manter essa ilusão de que somos um povo incompetente, de que somos todos uma raça inferior – coisa que já não se falava mais tão abertamente até pouco tempo atrás – para que eles se mantenham no poder. Conferir poder a uma casta de intermediários entre o senhor e o escravo é uma ferramenta, não é mero acaso. Mas não é o único elemento neste cenário.  É necessário manter a ilusão do teatro, o mito da democracia racial em que todos são iguais e se não estão em uma situação melhor isso é fruto apenas de suas próprias ações. E isso é só o começo, fica ligado nos próximos vídeos para descobrir a verdade sobre o racismo no Brasil.

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Memorial do Presente

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Poucos dias atrás o Brasil viu um ex-presidente que atentou contra a democracia ser punido com inelegibilidade por um de seus crimes. A repercussão foi gigantesca. Foram muitos os atentados contra a verdade, contra a humanidade, contra o erário, contra a democracia. Esse é o primeiro de muitos processos que podem e devem ser abertos contra o Bolsonaro. E, de fato, esse é um evento de importância única para o Brasil. Não apenas do ponto de vista legal, mas principalmente em termos simbólicos como marco no fortalecimento da democracia no nosso país. É nesse clima que resolvi fazer um pequeno memorial para relembrar o passado conectando-o com o presente. Vou mirar 3 aspectos em paralelo entre o 64 e o passado recente do Brasil.

Faz poucos dias também que vi uma notícia interessante, mais uma vez no ICL. Tem tudo a ver com o que estamos passando hoje, mas aconteceu num país vizinho.

Quatro médicos deram à luz a Gêmeos de uma presa política durante a ditadura militar Argentina. A mãe foi assassinada pela ditadura, os médicos renomearam as crianças e deram elas ilegalmente em adoção. Esses médicos, Edu, foram condenados na Argentina e mesmo já idosos cumprirão pena em regime fechado. A Argentina até hoje ela caça ela vai atrás de militares criminosos assassinos torturadores.

ICL

A Argentina tem passado por diversos problemas econômicos, mas, rivalidades à parte, nesse quesito eles estão muito à frente do Brasil. O esforço em não apenas colocar na cadeia as pessoas que atentaram contra a democracia, mas também o esforço e energia investidos pelo Estado em produzir memória social sobre o que foi a ditadura é essencial para banir de vez o desejo antidemocrático na sociedade. Por aqui, ao contrário, até o ano passado ainda se comemorava uma suposta “revolução de 64” nos quartéis. Ainda se vê, dentro e fora da caserna, pessoas defendendo a tese estapafúrdia de que o golpe militar de 1964 nos livrou da ameaça do comunismo no Brasil. [Card]. Aliás, teorias estrambólicas são a especialidade da casa, confere aí no card acima. Ainda se vê gente repetindo a mentira de que as Forças Armadas são um poder regulador, artigo 142 (da constituição federal) e tal… E, na verdade, o grande erro do Estado brasileiro nesse contexto foi a concessão de anistia aos selvagens que tomaram a máquina estatal para praticar crimes contra seus cidadãos no passado. Conceder anistia a Bolsonaro seria ainda pior por se a repetição de velhos erros e porque seria a prova de que realmente nada se aprendeu com os erros do passado.

Mencionei 3 fatores. Atentados contra a democracia alimentados por (e causadores de) crimes de ódio, mas que têm um objetivo oculto. O primeiro, ontem como hoje, busca atiçar as massas por meio da criação e repetição de teorias conspiratórias que levam a um estado constante de paranoia. O segundo está enraizado na cultura brasileira, parente próxima de velhas e conhecidas práticas de um país que insiste em ver parcelas de seus próprios cidadãos como inimigos. Já o terceiro é o objetivo principal e verdadeiro…

Se José acusa Antônio de ameaçar sua família, cabe a José provar que isso é verdade. “Ah, mas José, sua esposa e filhos podem estar correndo risco, temos que prender Antônio.” Não, José tem que apresentar provas de sua alegação sob o risco de destruir a família de Antônio. O Bolsonaro convocou embaixadores de sei lá quantos países e usou meios oficiais para desacreditar o sistema eleitoral brasileiro. Uma ação dessa magnitude mobilizou o mundo inteiro em torno do ex-presidente. Era a chance dele de provar e mostrar para todo mundo a ameaça que o Brasil estava sofrendo. Mas e se José estiver mentindo? Nenhuma evidência foi apresentada. O tal ataque hacker é notícia falsa, tudo orquestrado para gerar uma falsa sensação de insegurança. Os mesmos embaixadores chamaram a reunião de “ato de campanha” e disseram que a impressão de segurança do sistema eleitoral brasileiro não mudou. “Estamos correndo risco! É uma emergência!” É esse o sinal que esse tipo de ação passa para as pessoas. Se não reelegermos o presidente, vamos virar um país comunista.

A década de 60 foi o auge da Guerra Fria e também o palco do retorno da “ameaça”. Sim, a Ameaça Comunista é velha. E sim, é uma teoria da conspiração e deve ser chamada pelo seu nome e tratada como tal. Como apontam muitos especialistas, pesquisadores e historiadores, nunca houve no Brasil uma real possibilidade de sucesso de uma revolução comunista. Chega a ser patético. Quando foi que qualquer grupo de esquerda no Brasil teve dinheiro e armas para encarar uma guerra civil. As alas mais radicais de esquerda no Brasil sempre tiveram adesão baixa, predominando de forma abrangente as vertentes democráticas de esquerda. Inclusive e principalmente na atualidade. O principal partido de esquerda desde a década de 1980, é declaradamente democrata. Afirmação reforçada pelas centenas de governos locais e estaduais e pelos 13 anos que o PT esteve no Planalto.

Mas a ameaça comunista não surgiu na década de 60. Foi pano de fundo para muitos golpes e tentativas de golpe na história recente. Apesar de a Intentona Comunista de Prestes, na década de 30, ser a única tentativa real de revolta comunista, nunca chegou perto de ser uma ameaça real e foi neutralizada facilmente. Depois veio o famoso Plano Cohen, na segunda Era Vargas. Considerado uma das maiores falsificações da história do Brasil, a tramoia foi inventada descaradamente por membros das forças armadas e replicado por todos os jornais da época. A mesma teoria conspiratória foi usada durante várias crises e tentativas de golpe, dentre elas nas quedas do próprio Getúlio Vargas em 45 e 54, nas crises de 54/55, na tentativa de golpe de 61 e em 64. Não podia ser diferente com o Bolsonaro. Na versão atual, o comunismo internacional hackeou as urnas e se o nosso messias não for reeleito e salvar o Brasil, o que será de nós?

Toda teoria da conspiração tem uma característica essencial: elas são irrefutáveis. Na verdade, supostamente irrefutáveis. Se eu afirmo que vi o ET Bilu no meu quintal, quem vai provar que eu não vi? É impossível apresentar provas de que algo não existe ou não aconteceu. Ontem eu vi o Saci conversando com a Cuca na minha cozinha enquanto ela mexia seu caldeirão. Prova que eu não vi. Por isso a responsabilidade é de José, Antônio não pode ser preso por causa do ET Bilu, da Cuca e do Saci, do Senhor Cohen ou de qualquer teoria conspiratória. Essa é a razão da resposta dos embaixadores: ato de campanha que não muda a impressão de segurança. E essas teorias têm também um objetivo. Causar comoção e criar um ambiente de nós contra eles. Inventar inimigos para deixar as pessoas com medo e levar a uma reação coletiva, o chamado efeito de manada. Quando um grupo de animais está em perigo, eles tendem a se movimentar em bandos. O humano não é diferente. E instaurar um clima de ódio que divide as pessoas e abre caminho para a realização de seus planos: “o que queremos é apenas segurança, estou sendo atacado, estamos sendo atacados e eles não aceitam a intervenção militar”. Se a repetição de uma mentira tem o poder de fazê-la parecer verdade, é preciso constantemente produzir memória de fatos sobre o que fizeram as ditaduras no Brasil.

Eu sou favorável, na CPI, no caso do Chico Lopes, que tivesse um pau de arara lá, ele merecia isso, pau de arara, funciona. Eu sou favorável à tortura, tu sabe disso, e o povo é favorável a isso também. E só vai mudar, infelizmente, quando nós partimos para uma guerra civil aqui dentro e fazendo o trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil, começando com FHC. Vamos deixar para fora, não, matando, se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre alguns inocentes. Pela memória do Coronel Carlos Alberto brilhante.

Bolsonaro em diferentes falas.

O ódio a parcelas da população brasileira é um padrão de comportamento e um sentimento muito mais abrangente. Se replica, se repete, se institucionaliza e se instala na estrutura da sociedade há séculos. E os termos instituição e estrutura não foram usados por acaso. Ter uma parcela da população para odiar e chamar de inimigo remete à cultura escravocrata, práticas e sentimentos que se replicam, transbordam para outras áreas. E é curioso como os discursos se repetem. Desde o final do século XIX, mas principalmente no início do século XX com Gilberto Freyre, começa a ganhar força a narrativa de que no Brasil a escravidão foi mais branda que em outros lugares e que o racismo é menos intenso ou mesmo que não existe. Algo semelhante acontece no nosso caso aqui também. “A ditadura não foi tão má assim”, “no tempo da ditadura é que era bom”. Foram mais de 20 mil pessoas torturadas, segundo a Comissão da Verdade. 20 mil cidadãos torturados em razão de uma teoria conspiratória. Selvagens incivilizados que têm por hábito torturar pessoas para conseguir vantagens e alcançar objetivos verdadeiros. Bárbaros que pretendem eliminar parte da população caso não ajam conforme seus princípios tortos. E com que objetivos?

Muita gente acha que somos nós, os que lutam contra essas práticas medievais, que incitamos o racismo, o sexismo, a violência. Deixa quieto porque racismo é 1%, quanto mais se toca no assunto, mais o problema aumenta, dizem eles. Por outro lado, todos nós vimos um deputado federal, representante do povo que veio a se tornar chefe do executivo, defendendo genocídio, tortura e estupro em rede nacional e as instituições que deveriam coibir este tipo de declaração nada fizeram. No âmbito da sociedade, as pessoas repetiam que ele era só um brincalhão, que não era sério. Práticas que têm se repetido ao longo da história, que seguem acontecendo todos os dias nas favelas e nas delegacias, que vêm à tona de tempos em tempos na forma de tentativas de tomada de poder absoluto e que são defendidas abertamente por membros da assembleia legislativa e de outros poderes não são teoria da conspiração e sim, têm que ser discutidas. Expurgar as instituições desse tipo de discurso e prática é tão essencial quanto conectar suas versões atuais com suas origens no passado e construir memória social sobre elas. Não apenas as práticas, mas também seus objetivos finais. E aí entra o terceiro fator.

Como expurgar as instituições desse tipo de prática? A corrupção é uma ferramenta de controle e poder. O político faz a sua pequena fortuna (sim, pequena, políticos em geral não são os donos do poder), mas em troca ele tem ordens a cumprir na manutenção da estrutura de poder. Por isso o Bolsonaro fez tantos inimigos e terminou mal. Ele quis virar o imperador do Brasil. Fiz um vídeo que fala sobre isso. E olha que coincidência, a prática de tortura é também uma ferramenta de poder e controle. Como se pode branquear a imagem da classe política e purificar suas instituições? Todo mundo quer ter uma vida boa, quer se sentir bem. Por que o padrão de comportamento de busca do bem-estar se confunde com a destruição do bem-estar, do corpo, da vida de outras pessoas? De onde vem esse padrão repetido em vários momentos históricos de produzir inimigos internos, grupos disponíveis para serem torturados ou eliminados e de buscar satisfação denegrindo e aviltando determinados grupos?

Os atos do passado produzem memória coletiva. Hábitos das gerações anteriores se replicam e se adaptam a novos contextos. Por isso é preciso produzir memória para criar novos hábitos. Reconhecer e punir práticas de abuso e acumulação de poder e produzir memória. Saiu um filme ano passado sobre a condenação de ditadores argentinos. Se chama “Argentina, 1985”, tem na Amazon. Excelente oportunidade para ver como sim é possível colocar essa gente atrás das grades. Um desses aí morreu não tem muito tempo sentado na privada da sua cela. A inelegibilidade de Bolsonaro é um pequeno passo de um caminho que pode levar a um futuro diferente do que temos visto ao longo da nossa história.

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O Rio continua lindo, certo?

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Umas semanas atrás assistimos os últimos episódios da guerra diária no Rio de Janeiro. Imagina se toda essa violência começasse de repente a ameaçar nossas casas e matar nossos vizinhos e talvez até nossos filhos! Essa poderia ser a chamada de qualquer noticiário carioca dos últimos 60 anos, pelo menos. Menos de um noticiário atual!

Quando  se fala do Rio, uma das primeiras ideias que vêm à mente é paisagem. São tantas músicas, novelas, livros, poemas, conversas, pensamentos… todos têm em comum uma mesma preocupação: o Rio de Janeiro continua lindo? Mas como feio não é bonito, se as belezas naturais da cidade inspiraram tantas histórias, as construções sociais, nem sempre tão belas,  também serviram de matéria prima para produzir beleza. Musas inspiradoras sempre, agraciadas ou não pelos padrões de beleza, as paisagens naturais, as paisagens construídas e as paisagens sociais são os tijolos que integram a imagem socialmente construída do Rio. Purgatório da beleza e do caos, paisagens que trazem contradição em sua origem e essência ao mito da cidade maravilhosa.

Contradições que ficam, naturalmente, ofuscadas pelas belezas naturais e pela gente extrovertida e pelos bares, festas, carnavais… Ficam até bonitas as imagens das favelas do Rio! Só depende do ângulo. E, se a gente consegue colocar um pôr do sol ao fundo, ou as ondas do mar… Acontece que nada acontece naturalmente, tudo é construção. A naturalidade com que a beleza puxa os olhares e a impossibilidade de olhar em duas direções ao mesmo tempo é apenas o truque dos cérebros que conduzem os corações a enxergar apenas o que não machuca. Negação que leva, com o tempo, a uma espécie de cegueira ou invisibilidade. Por meio do esquecimento, da vista grossa, da tendência à negação do feio e à preferência pelo bonito, perdemos a capacidade de enxergar o que está gritando na nossa frente. Invisibilizamos o absurdo. Transformamos em paisagem o que na verdade é construção, atuação, responsabilidade.

Mas sobre que mito estamos falando? Esse vídeo é sobre a atual guerra entre milicianos e traficantes na Zona Oeste. A Zona Oeste é grande. Para quem é de fora, é a maior região do Rio. Vizinha da Zona Norte e da Zona Sul, as fronteiras dos bairros da Zona Oeste do Rio de Janeiro se estendem de São Conrado a Madureira, Rocha Miranda e Anchieta. A Barra é Zona Oeste, um dos bairros mais caros do Rio. O Pau da Fome também. Esse ninguém conhece. Mas a guerra não é na Barra. É em lugares que têm nomes menos reconhecíveis para quem é de fora que a coisa toda acontece. Muzema, Gardênia Azul e Rio das Pedras; Campinho, Chacrinha, Pombal… Outros já mais famosos, como a Cidade de Deus.  Como assim? Qual é a contribuição da Gardênia Azul  com as míticas belezas cariocas?

Uma cidade sitiada

A minha pergunta é como o Rio se tornou essa cidade sitiada. As favelas são cidades sitiadas desde sempre. Mas o Rio, como ficou assim? Curioso isso! Já faz tempo que o condomínio fechado virou paradigma de moradia e segurança. Brincar livremente pelas ruas é impensável e virou meme de tiozão. O que está acontecendo na Zona Oeste nas últimas semanas e meses já virou o padrão de vida carioca faz tempo. Em todas as partes, em todas as regiões. Quase ninguém mais vive no Rio sem abaixar a cabeça para traficante ou pagar mensalidade para miliciano. Zona Sul e Barra talvez sejam exceções. Estão virando um imenso condomínio fechado com área de lazer e piscina. Só falta começar a erguer os muros. Mas nem sempre foi assim. O Rio de Janeiro já foi lindo. Crianças  na rua, natureza, praias, harmonia entre as pessoas, futebol de várzea, vôlei de praia… Maravilha de cenário! O sonho carioca. Aquela minha pergunta ainda faz sentido para você?

Quem vem governando essa maravilha?

Nos últimos 59 anos, ou seja, de 64 para cá, estado e município do Rio – além do Estado da Guanabara – passaram, grosso modo, 50 anos sob o controle de agremiações como ARENA, UDN, PFL, PTB, DEM, MDB, PSDB, PSC, PL e de figuras obscuras do PDT e do PSB  que depois acabaram por migrar para algum dos partidos acima. Dos 9 anos que nos restaram, foram 8 anos administrados pelo PDT raiz – entenda-se Brizola – com um interlúdio de 9 meses com o PT da Benedita. Enfim, apesar da divisão ser grosseira, tenho certeza de que reflete, em linhas gerais, a realidade política fluminense e carioca. E nem vou me meter a falar do que acontecia antes  de 64.

A atuação do Estado nas favelas se deu sempre por meio de políticas de eliminação. A guerra ao narcotráfico é só um exemplo. O Estado vem, desde sempre, atuando nessas áreas de forma letal, como uma política de combate às pessoas, e não aos problemas. É claro que ninguém fala nesses termos, a notícia nos jornalões vai trazer sempre referências a uma guerra cujo inimigo é o tráfico. Tá, no passado eram mais explícitos, chamavam combate à vagabundagem, à capoeira, à macumba, ao samba… A polícia  não arromba porta de traficante da Zona Sul. A polícia não mata o vizinho inocente dele.

A única exceção a esse tipo de política foram justamente os poucos anos de brizolismo. Enquanto esteve à frente do Estado do Rio, Brizola mudou as práticas policiais nas favelas. Não permitia que a polícia subisse o morro disparando tiros, matando famílias e crianças inocentes, atirando em qualquer um que parecesse suspeito, de acordo com seus próprios e questionáveis critérios. Não permitiu que invadissem lares, garantindo assim a inviolabilidade da residência. Direitos básicos garantidos a qualquer pessoa que possa ser reconhecida como cidadã.

Não  é preciso dizer que esta política sofreu forte resistência  das elites; das mídias, que são seu porta voz; e, claro, da polícia. Foi acusada de servir para proteger bandido, sofreu uma campanha feroz de desconstrução de sua real imagem e objetivos. Mas não se trata apenas de não meter mais o pé na porta de favelado. As mudanças propostas na forma como a polícia intercedia nas comunidades veio acompanhada de um grande projeto de criação de escolas nas regiões próximas a elas, os CIEPs, rebatizados Brizolões pela mídia. Em seu projeto original, pretendiam ser escolas em tempo integral que manteriam crianças   ocupadas e protegidas. E com seu futuro garantido pela educação. O sonho carioca!

Tampouco é necessário dizer que estes projetos foram abolidos com ansiedade pelos governos que se sucederam. Imagina, colégio integral para criança de favela! Os resultados estão aí. Deixa aí nos comentários: como vocês acham que estaríamos hoje, 40 anos depois, se tal projeto tivesse sido continuado e aprimorado? Um fato curioso. Certo como fumaça para fogo. Sintomático como febre para virose: dois dos mais famosos massacres cariocas ocorreram bem no final da segunda gestão brizolista: a chacina da Candelária e o massacre de Vigário Geral. Explosões letais de violência realizadas por agentes do Estado, ainda que na contramão da política do então governo. Explodem, talvez, como o alívio de um desejo reprimido. Uma represa que não consegue mais se manter de pé e se arrebenta. Um pequeno aperitivo e o prenúncio de que os cães raivosos e famintos vão estar à solta de novo. Mas isso é tema talvez para um outro vídeo.

Não estamos todos nós, cidadãos cariocas, reféns de grupos que vêm controlando mais e mais espaços a ponto de sobrar apenas (e talvez) a Zona Sul? Não estamos sob ameaça de morte velada ou escancarada por parte desses grupos? Nossas casas não estão sob ameaça de invasão, nossos filhos sob ameaça de morte? Faz sentido sim, estamos sofrendo com os mesmos problemas dos favelados. O Condomínio Cidade Maravilhosa está ficando cada vez mais apertado e diria até oprimido. Em redor de si cresce a cada dia mais uma área sitiada. E ao mesmo tempo fica mais difícil sustentar a imagem maravilhosa da cidade. Entre fantasia e realidade, as pessoas tendem sempre a escolher a fantasia. Desde que isso signifique menos sofrimento. Só que isso que cresce em redor dos muros dos nossos castelos de areia tem um nome: realidade. Da minha parte, ainda me questiono se minha pergunta faz sentido.

A experiência

Vi uma experiência social na internet recentemente. Colocaram uma menina negra sozinha em uma praça pública. Bem-vestida, arrumadinha, penteada. É um lugar movimentado, tipo centro de alguma cidade grande. Ninguém para para saber o que está acontecendo com aquela criança. Trocam a menina negra por uma loira e, aos olhos dos transeuntes, a situação imediatamente vira o que ela de fato é, ou seja, um absurdo. Uma criança sozinha perdida no centro de uma grande cidade é uma situação anormal, merece cuidado. As pessoas são capazes de enxergar aquilo como o absurdo que é. Várias pessoas param para conversar com a segunda menina… Tem algo errado com isso. O que há de tão feio com aquela menina que a torna invisível ? É uma criança!

Só se pode dizer que hoje o Rio está virando uma cidade sitiada porque há muito que se nega a cidadania de milhares de não-cidadãos. O Rio só passa a ser uma cidade sitiada quando seus cidadãos estão sob ameaça. Favelas são regiões sitiadas e isso não converteu o mítico Rio do passado em uma cidade sitiada porque não-cidadãos não contam como critério. Sequer são enxergados!

Se hoje a violência começasse a ameaçar nossas casas e matar nossos vizinhos e talvez até nossos filhos, para quem isso seria uma notícia atual? Acontece que nossos filhos, nossos vizinhos e os filhos de nossos vizinhos estão sob ameaça letal há séculos. O Rio não se tornou essa cidade sitiada. O rio sempre foi essa cidade. Madureira, Gardênia Azul, Cidade de Deus… são parte da cidade. Ainda que negadas, não se pode, por lógica, dizer que a cidade do Rio um dia não foi uma cidade sitiada, uma vez que muitas de suas localidades, que provavelmente abriga a maior parte de sua população estiveram desde sempre sitiadas. A única coisa que em algum passado mítico gerou essa feliz sensação de que o Rio foi um paraíso é a naturalização da não cidadania. O espaço dos cidadãos algum dia não esteve sitiado. Talvez depois das reformas higienizadoras de Pereira Passos nos idos de 1900. Mas os espaços daqueles invisíveis, os não cidadãos, dentro dos muros da mesma cidade, sempre estiveram. O Rio tem estado de sítio desde sempre. E a prova mais cabal de que essas pessoas são não-cidadãos invisíveis, ou seja, a negação do que está gritando na sua frente, é a base da manutenção de um mito, o mito de uma cidade maravilhosa.

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