Memorial do Presente

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Poucos dias atrás o Brasil viu um ex-presidente que atentou contra a democracia ser punido com inelegibilidade por um de seus crimes. A repercussão foi gigantesca. Foram muitos os atentados contra a verdade, contra a humanidade, contra o erário, contra a democracia. Esse é o primeiro de muitos processos que podem e devem ser abertos contra o Bolsonaro. E, de fato, esse é um evento de importância única para o Brasil. Não apenas do ponto de vista legal, mas principalmente em termos simbólicos como marco no fortalecimento da democracia no nosso país. É nesse clima que resolvi fazer um pequeno memorial para relembrar o passado conectando-o com o presente. Vou mirar 3 aspectos em paralelo entre o 64 e o passado recente do Brasil.

Faz poucos dias também que vi uma notícia interessante, mais uma vez no ICL. Tem tudo a ver com o que estamos passando hoje, mas aconteceu num país vizinho.

Quatro médicos deram à luz a Gêmeos de uma presa política durante a ditadura militar Argentina. A mãe foi assassinada pela ditadura, os médicos renomearam as crianças e deram elas ilegalmente em adoção. Esses médicos, Edu, foram condenados na Argentina e mesmo já idosos cumprirão pena em regime fechado. A Argentina até hoje ela caça ela vai atrás de militares criminosos assassinos torturadores.

ICL

A Argentina tem passado por diversos problemas econômicos, mas, rivalidades à parte, nesse quesito eles estão muito à frente do Brasil. O esforço em não apenas colocar na cadeia as pessoas que atentaram contra a democracia, mas também o esforço e energia investidos pelo Estado em produzir memória social sobre o que foi a ditadura é essencial para banir de vez o desejo antidemocrático na sociedade. Por aqui, ao contrário, até o ano passado ainda se comemorava uma suposta “revolução de 64” nos quartéis. Ainda se vê, dentro e fora da caserna, pessoas defendendo a tese estapafúrdia de que o golpe militar de 1964 nos livrou da ameaça do comunismo no Brasil. [Card]. Aliás, teorias estrambólicas são a especialidade da casa, confere aí no card acima. Ainda se vê gente repetindo a mentira de que as Forças Armadas são um poder regulador, artigo 142 (da constituição federal) e tal… E, na verdade, o grande erro do Estado brasileiro nesse contexto foi a concessão de anistia aos selvagens que tomaram a máquina estatal para praticar crimes contra seus cidadãos no passado. Conceder anistia a Bolsonaro seria ainda pior por se a repetição de velhos erros e porque seria a prova de que realmente nada se aprendeu com os erros do passado.

Mencionei 3 fatores. Atentados contra a democracia alimentados por (e causadores de) crimes de ódio, mas que têm um objetivo oculto. O primeiro, ontem como hoje, busca atiçar as massas por meio da criação e repetição de teorias conspiratórias que levam a um estado constante de paranoia. O segundo está enraizado na cultura brasileira, parente próxima de velhas e conhecidas práticas de um país que insiste em ver parcelas de seus próprios cidadãos como inimigos. Já o terceiro é o objetivo principal e verdadeiro…

Se José acusa Antônio de ameaçar sua família, cabe a José provar que isso é verdade. “Ah, mas José, sua esposa e filhos podem estar correndo risco, temos que prender Antônio.” Não, José tem que apresentar provas de sua alegação sob o risco de destruir a família de Antônio. O Bolsonaro convocou embaixadores de sei lá quantos países e usou meios oficiais para desacreditar o sistema eleitoral brasileiro. Uma ação dessa magnitude mobilizou o mundo inteiro em torno do ex-presidente. Era a chance dele de provar e mostrar para todo mundo a ameaça que o Brasil estava sofrendo. Mas e se José estiver mentindo? Nenhuma evidência foi apresentada. O tal ataque hacker é notícia falsa, tudo orquestrado para gerar uma falsa sensação de insegurança. Os mesmos embaixadores chamaram a reunião de “ato de campanha” e disseram que a impressão de segurança do sistema eleitoral brasileiro não mudou. “Estamos correndo risco! É uma emergência!” É esse o sinal que esse tipo de ação passa para as pessoas. Se não reelegermos o presidente, vamos virar um país comunista.

A década de 60 foi o auge da Guerra Fria e também o palco do retorno da “ameaça”. Sim, a Ameaça Comunista é velha. E sim, é uma teoria da conspiração e deve ser chamada pelo seu nome e tratada como tal. Como apontam muitos especialistas, pesquisadores e historiadores, nunca houve no Brasil uma real possibilidade de sucesso de uma revolução comunista. Chega a ser patético. Quando foi que qualquer grupo de esquerda no Brasil teve dinheiro e armas para encarar uma guerra civil. As alas mais radicais de esquerda no Brasil sempre tiveram adesão baixa, predominando de forma abrangente as vertentes democráticas de esquerda. Inclusive e principalmente na atualidade. O principal partido de esquerda desde a década de 1980, é declaradamente democrata. Afirmação reforçada pelas centenas de governos locais e estaduais e pelos 13 anos que o PT esteve no Planalto.

Mas a ameaça comunista não surgiu na década de 60. Foi pano de fundo para muitos golpes e tentativas de golpe na história recente. Apesar de a Intentona Comunista de Prestes, na década de 30, ser a única tentativa real de revolta comunista, nunca chegou perto de ser uma ameaça real e foi neutralizada facilmente. Depois veio o famoso Plano Cohen, na segunda Era Vargas. Considerado uma das maiores falsificações da história do Brasil, a tramoia foi inventada descaradamente por membros das forças armadas e replicado por todos os jornais da época. A mesma teoria conspiratória foi usada durante várias crises e tentativas de golpe, dentre elas nas quedas do próprio Getúlio Vargas em 45 e 54, nas crises de 54/55, na tentativa de golpe de 61 e em 64. Não podia ser diferente com o Bolsonaro. Na versão atual, o comunismo internacional hackeou as urnas e se o nosso messias não for reeleito e salvar o Brasil, o que será de nós?

Toda teoria da conspiração tem uma característica essencial: elas são irrefutáveis. Na verdade, supostamente irrefutáveis. Se eu afirmo que vi o ET Bilu no meu quintal, quem vai provar que eu não vi? É impossível apresentar provas de que algo não existe ou não aconteceu. Ontem eu vi o Saci conversando com a Cuca na minha cozinha enquanto ela mexia seu caldeirão. Prova que eu não vi. Por isso a responsabilidade é de José, Antônio não pode ser preso por causa do ET Bilu, da Cuca e do Saci, do Senhor Cohen ou de qualquer teoria conspiratória. Essa é a razão da resposta dos embaixadores: ato de campanha que não muda a impressão de segurança. E essas teorias têm também um objetivo. Causar comoção e criar um ambiente de nós contra eles. Inventar inimigos para deixar as pessoas com medo e levar a uma reação coletiva, o chamado efeito de manada. Quando um grupo de animais está em perigo, eles tendem a se movimentar em bandos. O humano não é diferente. E instaurar um clima de ódio que divide as pessoas e abre caminho para a realização de seus planos: “o que queremos é apenas segurança, estou sendo atacado, estamos sendo atacados e eles não aceitam a intervenção militar”. Se a repetição de uma mentira tem o poder de fazê-la parecer verdade, é preciso constantemente produzir memória de fatos sobre o que fizeram as ditaduras no Brasil.

Eu sou favorável, na CPI, no caso do Chico Lopes, que tivesse um pau de arara lá, ele merecia isso, pau de arara, funciona. Eu sou favorável à tortura, tu sabe disso, e o povo é favorável a isso também. E só vai mudar, infelizmente, quando nós partimos para uma guerra civil aqui dentro e fazendo o trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil, começando com FHC. Vamos deixar para fora, não, matando, se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre alguns inocentes. Pela memória do Coronel Carlos Alberto brilhante.

Bolsonaro em diferentes falas.

O ódio a parcelas da população brasileira é um padrão de comportamento e um sentimento muito mais abrangente. Se replica, se repete, se institucionaliza e se instala na estrutura da sociedade há séculos. E os termos instituição e estrutura não foram usados por acaso. Ter uma parcela da população para odiar e chamar de inimigo remete à cultura escravocrata, práticas e sentimentos que se replicam, transbordam para outras áreas. E é curioso como os discursos se repetem. Desde o final do século XIX, mas principalmente no início do século XX com Gilberto Freyre, começa a ganhar força a narrativa de que no Brasil a escravidão foi mais branda que em outros lugares e que o racismo é menos intenso ou mesmo que não existe. Algo semelhante acontece no nosso caso aqui também. “A ditadura não foi tão má assim”, “no tempo da ditadura é que era bom”. Foram mais de 20 mil pessoas torturadas, segundo a Comissão da Verdade. 20 mil cidadãos torturados em razão de uma teoria conspiratória. Selvagens incivilizados que têm por hábito torturar pessoas para conseguir vantagens e alcançar objetivos verdadeiros. Bárbaros que pretendem eliminar parte da população caso não ajam conforme seus princípios tortos. E com que objetivos?

Muita gente acha que somos nós, os que lutam contra essas práticas medievais, que incitamos o racismo, o sexismo, a violência. Deixa quieto porque racismo é 1%, quanto mais se toca no assunto, mais o problema aumenta, dizem eles. Por outro lado, todos nós vimos um deputado federal, representante do povo que veio a se tornar chefe do executivo, defendendo genocídio, tortura e estupro em rede nacional e as instituições que deveriam coibir este tipo de declaração nada fizeram. No âmbito da sociedade, as pessoas repetiam que ele era só um brincalhão, que não era sério. Práticas que têm se repetido ao longo da história, que seguem acontecendo todos os dias nas favelas e nas delegacias, que vêm à tona de tempos em tempos na forma de tentativas de tomada de poder absoluto e que são defendidas abertamente por membros da assembleia legislativa e de outros poderes não são teoria da conspiração e sim, têm que ser discutidas. Expurgar as instituições desse tipo de discurso e prática é tão essencial quanto conectar suas versões atuais com suas origens no passado e construir memória social sobre elas. Não apenas as práticas, mas também seus objetivos finais. E aí entra o terceiro fator.

Como expurgar as instituições desse tipo de prática? A corrupção é uma ferramenta de controle e poder. O político faz a sua pequena fortuna (sim, pequena, políticos em geral não são os donos do poder), mas em troca ele tem ordens a cumprir na manutenção da estrutura de poder. Por isso o Bolsonaro fez tantos inimigos e terminou mal. Ele quis virar o imperador do Brasil. Fiz um vídeo que fala sobre isso. E olha que coincidência, a prática de tortura é também uma ferramenta de poder e controle. Como se pode branquear a imagem da classe política e purificar suas instituições? Todo mundo quer ter uma vida boa, quer se sentir bem. Por que o padrão de comportamento de busca do bem-estar se confunde com a destruição do bem-estar, do corpo, da vida de outras pessoas? De onde vem esse padrão repetido em vários momentos históricos de produzir inimigos internos, grupos disponíveis para serem torturados ou eliminados e de buscar satisfação denegrindo e aviltando determinados grupos?

Os atos do passado produzem memória coletiva. Hábitos das gerações anteriores se replicam e se adaptam a novos contextos. Por isso é preciso produzir memória para criar novos hábitos. Reconhecer e punir práticas de abuso e acumulação de poder e produzir memória. Saiu um filme ano passado sobre a condenação de ditadores argentinos. Se chama “Argentina, 1985”, tem na Amazon. Excelente oportunidade para ver como sim é possível colocar essa gente atrás das grades. Um desses aí morreu não tem muito tempo sentado na privada da sua cela. A inelegibilidade de Bolsonaro é um pequeno passo de um caminho que pode levar a um futuro diferente do que temos visto ao longo da nossa história.

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