Racismo estrutural e os intermediários do poder (1/3)

Tem uma cena de Memórias Póstumas, de Machado de Assis, que me impressionou muito quando li pela primeira vez, ainda adolescente, e que vai sempre me impressionar. No capítulo 68, O Vergalho, Cubas é interrompido em seus pensamentos por uma aglomeração enquanto caminhava pelas proximidades do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro. Ao se aproximar, constata: “era um preto que vergalhava outro na praça”.  

A cena da ficção de Machado, que representa o mesmo tipo de práticas fundadoras da estrutura racial da sociedade, se repete em muitas outras obras no Brasil colonial.

Uma delas, uma aquarela de 1822 do pintor australiano Augustus Earle, imagem acima, encena mais um episódio de punição por meio de tortura pública, também sob o olhar do senhor. O braço erguido em vertical, o chicote voando em direção ao corpo arregaçado da vítima, o feitor acompanhando de perto a ação.

Tá, mas isso não acontece mais

É lugar comum repetir, como tantas outras frases dessas que as pessoas repetem sem pensar, que também existe racismo entre os negros ou que os negros é que são racistas. Existe verdade nessa colocação? É possível.

Porém, as mesmas pessoas que repetem esse tipo de afirmação vão negar suas conexões históricas. Conexões que me fazem acreditar que a repetição destas frases seja tão filha das práticas escravocratas quanto a repetição dos padrões de comportamento retratados naquela pintura. Palavra e ação.

Se a frase é filha da escravidão e perpetua seu DNA, por que eu deveria acreditar que suas irmãs, as práticas escravistas, já teriam morrido?

É difícil também perceber uma outra contradição que existe nesse tipo de crença. Os mesmos sintomas que são tão nítidos e servem para denunciar o racismo em não-brancos, são invisíveis quando se está diante do espelho.

Na verdade, em ambos os casos, trata-se de relações históricas que evidenciam como as estruturas sociais naturalizadas são produzidas e reproduzidas por meio de paradigmas de comportamento que têm origem em práticas racistas e em última instância são exemplos de racismo estrutural. E essas práticas envolvem a todas as classes e pessoas.

Muita gente tem falado sobre este tema ultimamente e o livro do momento é Racismo Estrutural de Silvio Almeida, vale a pena conferir. Muita gente não gosta do nome racismo estrutural. (Eu também não. Me incomoda, essa expressão! Não sei bem por quê…) E as pessoas ainda têm dificuldade de entender o que é racismo estrutural. Nesta série de 3 artigos, vou tentar mostrar alguns exemplos.

Uma imagem repulsiva

A relação que se estabelece entre aquelas duas pessoas escravizadas não pode ser compreendida intuitivamente. A primeira emoção é de repulsão pelo carrasco. “Como ele pode fazer isso com seu próprio irmão!?”

O ser humano tende a se solidarizar com o sofrimento comum. Em situações em que há sofrimento, é comum que membros de comunidades em situação de risco se ajudem mutuamente.

Exceções vão ocorrer quando esse grupo está polarizado por alguma disputa ou quando dividido por algum outro fator externo.

Na verdade, o hábito de condenar pessoas à tortura pública, pelas mãos de outras pessoas igualmente escravizadas é muito anterior à imagem. A partir da década de 1820, muitos países americanos já estavam começando a abolir regimes escravocratas.

Não é minha intenção aqui discutir os eventos históricos que deram origem a esse tipo de prática e, na verdade, não sei se existe um evento que marque seu início. Prefiro seguir olhando as representações produzidas sobre elas.

Detalhe da pintura de Earle: relações de poder repetidas e silenciadas como base do racismo estrutural.
Detalhe da pintura de Earle: relações de poder repetidas e silenciadas como base do racismo estrutural.

A origem do silêncio

Sempre que vejo essa imagem ou lembro da cena de Machado, me pergunto como teria sido a primeira vez que ela ocorreu. E como uma cena tão contra a natureza humana pode ter se tornado tão natural.

“Você vai dar cem chibatadas no seu companheiro para mim. Se se recusar, eu te dou as cem chibatadas e você vai ter que dar duzentas nele”. Poderia ter sido assim a primeira vez? Parece verossímil, embora esse tipo de relação na realidade seja muito mais complexo.

Em todo caso, a partir daí, começa a virar hábito. Fica natural, as pessoas perdem a capacidade de se indignar. Como pode uma cena aparentemente tão chocante ficar tão natural e corriqueira quanto ver uma criança enegrecida em uma rua do centro da cidade e não ser movido por nenhum sentimento de piedade? (Até porque as pessoas têm suas vidas. Imagina o trabalho que daria pegar uma criança dessas, levar para casa, cuidar, criar junto com as suas, isso não ia dar certo!)

É doloroso pensar sobre o tema. É doloroso falar sobre o tema. Vira silêncio. Mas no dia seguinte, um ser escravizado vai ter que rasgar as costas de outro ser escravizado uma vez mais. E a chantagem do senhor também já não precisa ser repetida. Também vira silêncio. Fica apenas o hábito que se repete diariamente através dos séculos.

O poder move montanhas

A pintura retrata uma cena que se passa no Calabouço, prisão que fazia parte das fortificações existentes no hoje inexistente Morro do Castelo, no Rio de Janeiro.

Um parêntesis: que força tão grande faz a elite de um lugar mover as montanhas de uma cidade e enterrá-la com todos os escombros de sua história? O Morro do Castelo, que foi derrubado e virou aterro no Centro do Rio, abrigava a primeira edificação portuguesa construída no Rio de Janeiro em mil quinhentos e tal. E, é claro, era o lar de uma densa população de descendentes de escravos até o início do século 20.

A última vez que vi a pintura do Calabouço foi no livro Defiant Geographies: Race and Urban Space in 1920s Rio de Janeiro, da pesquisadora Lorraine Leu, no qual ela responde a essa pergunta, que tem muitas conexões com o que estou falando. Mas é uma outra história.

A cena se passa no Castelo e a relação de poder que se impõe entre esses dois homens e entre eles e o poder representado pelo feitor, muito bem capturada na troca de olhares entre eles, se perpetua até hoje. O poder, o escravo e o intermediário.

E seria ingenuidade – ou seria conveniente? – acreditar que sua repetição contínua durante o período colonial teve natureza racial, mas hoje não passa de coincidência, arbitrariedade, mera obra do acaso. Relações de poder não são obras do acaso.

Mas eu sou gente boa, só gosto de fazer umas piadas…

É comum as pessoas pensarem sobre o racismo como um desentendimento entre as pessoas. Ou como uma ofensa, um xingamento. Muitas vezes são pessoas que não tem uma relação de autoridade ou de poder tão discrepante. São “gente como a gente”, como se diz.

E o lugar comum mais recente sobre isso no Brasil é a rejeição a tudo que cheire a politicamente correto. “Não se pode dizer mais nada, é a ditadura do politicamente correto”.

Atos de agressão são tolerados porque são compreendidos pelas pessoas como fatos aleatórios, arbitrários. E quem repete esse tipo de discurso fica chato. É irritante repetir essa ladainha. As pessoas que só querem se divertir e nada mais.

É melhor não falar então. E mais uma vez o silêncio entra em cena. É justamente a dificuldade de enxergar conexão histórica entre fatos aparentemente ao acaso que constrói a ideia de que não existe a conexão. Fica parecendo que não são construções sociais, que não há nexo histórico.

A teoria de Brás Cubas

Depois de constatar que o homem que torturava outro homem em praça pública era um de seus ex-escravos, Cubas ensaia uma explicação: “Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas – transmitindo-as a outro”.

Parece razoável. Uma reação movida por ressentimento ou apenas por encontrar alguém colocado em situação de maior vulnerabilidade que a sua. Um ato isolado, sem conexões além da amargura íntima de um indivíduo.

Porém, ser libertado pelo senhor o coloca em uma situação de poder, embora ainda dentro do sistema criado pelo senhor. Uma relação de poder que convém ao senhor. E aí me ocorre um outro lugar comum: “a polícia brasileira é incorrigível, é impossível, ninguém vai consertar”.

Os grupos detentores de poder, quando querem, são capazes de mover montanhas e soterrá-las com todas as suas conexões históricas. E o sentimento racista é que motiva isso e coisas muito piores. Então, se eles não consertam a polícia é porque têm interesse em manter a estrutura por eles construída como está.

Violência, silêncio, repetição…

O desempenho de um ato de agressão não tem nada de aleatório. Só é possível representar um ato deste tipo quando os personagens já estão muito bem estabelecidos. E para que isso aconteça, a repetição seguida de silêncio é imprescindível.

Silêncio não significa necessariamente ausência de som – ou quase nunca significa. É possível haver silêncio no meio do mais ruidoso burburinho. É possível até mesmo, e muito frequente, haver silêncio em meio à gritaria mais estridente. Silêncio, em vez disso, é a própria ausência de consciência da estrutura racial que se estabelece por meio da repetição inconsciente dos atos de violência.

Silêncio é não ver o fio histórico de violência/silêncio/repetição, violência/silêncio/repetição… É ver a imagem de um policial castigando crianças, entender que ele estava “apenas cumprindo seu dever ao controlar os arruaceiros” e não enxergar que é preciso que cada pessoa desempenhe seu papel nesse teatro para que isso ocorra.

Ex-capitão da PMRJ em 2011, promovido a major meses depois de agredir crianças com borrifador de pimenta como exemplo de racismo estrutural.
Ex-capitão da PMRJ em 2011, promovido a major meses depois de agredir crianças com borrifador de pimenta como exemplo de racismo estrutural.

Quem controla quem?

É preciso não só acreditar que o policial esteja apenas cumprindo seu dever para que existam pessoas menos dignas de proteção da sociedade – “na Zona Sul eles não fazem isso”. É necessário também que o sofrimento dessas pessoas seja transparente, naturalizado pela repetição; que não cause mais qualquer consternação nas demais pessoas. E é preciso que ninguém enxergue que isso é parte de uma tecnologia maior de controle para a qual convém que as coisas sejam assim, convém manter essas pessoas como não cidadão, já que já não podem mais afirmá-las como não humanos.

Afinal, “ninguém consegue dar jeito na polícia, eles são incontroláveis”. Ainda que essa estrutura racializada não tenha sido arquitetada como um plano maquiavélico em uma dessas teorias da conspiração. São apenas papéis sociais representados diariamente. Convenientes para uns, dolorosos para outros, cuidadosamente estimulados e sustentados por quem precisa e pode manter as coisas como são.

A presença invisível

As elites que movem montanhas, tiram e botam presidentes, têm poder para manter sob controle as instituições necessárias à manutenção do seu poder. E uma dessas instituições é o teatro! É necessário manter essa ilusão de que somos um povo incompetente, de que somos todos uma raça inferior – coisa que já não se falava mais tão abertamente até pouco tempo atrás – para que eles mantenham o poder.

Conferir poder a uma casta de intermediários entre o senhor e o escravo é uma ferramenta, não é mero acaso. E se tem uma coisa mais invisível do que a dor dos não cidadãos, é a presença de uma elite que mantém as coisas como elas são.

Esse teatro tem vários atores e mitos bem visíveis mostrando suas caras no palco. O povo arruaceiro, desordeiro, nunca suficientemente evoluído para ser civilizado; a classe média superior, afinal, quem tem não-cidadãos abaixo de si tem sempre aquele ar de superioridade; a polícia que ninguém controla, mas que “sabe a hora de cumprir seu dever”; e acima de todos, regendo o concerto do caos, ah!, a classe política.

São eles que mandam no país! Mas, oh, que pena, eles são tão corruptos e não pensam em ninguém. Só que não!

Políticos são também atores nesta encenação. Corrupção e caos político também são ferramentas que pertencem a quem está puxando as cordas atrás das cortinas, a quem realmente manda. Mas isso é tema para outro debate.

Concluindo

Racismo é estrutural. O racismo é, na verdade, a estrutura. E é isso que me incomoda. A expressão racismo estrutural é um pleonasmo, uma repetição irritante. Não existem dois tipos de racismo.

A expressão racismo estrutural devia deixar de existir. Devia virar uma palavra só. Racismestrutura ou algo assim. E racismo não é uma ofensa ou um desentendimento, como uma troca de farpas. Ou não é apenas isso. Racismo não se resume a chamar um negro de negro ou um Caiapó de índio. Isto é apenas uma farpa em uma porta de um edifício cuja estrutura se funda e se aprofunda historicamente nas sociedades pós-(neo)-coloniais.

E a prova disso é que se um indivíduo não-branco, em um desentendimento, chamar um branco de branco, essa ação é tão inócua quanto chamar uma garrafa de garrafa ou uma bola de bola.

Mesmo que ele use termos um pouco mais depreciativos a farpa ainda não espeta. É preciso que toda a estrutura seja mobilizada para que palavras virem humilhações; que cada indivíduo saiba seu lugar na estrutura de poder em que está inserido para que a mera menção de uma cor vire um insulto. É preciso mais, é preciso saber encenar o seu papel.

E é difícil atuar dentro da estrutura racista sem cometer erros, mesmo estando bem intencionado. Temos que agir todos os dias. E é sempre muito tentador mobilizar esta estrutura, aceitar a sensação de poder que isso traz, e encenar uma vez mais um velho papel nesse teatro.

Comentem, compartilhem e não esqueçam de dar uma olhada nos dois outros artigos da série aqui e aqui.

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