Onde realmente está o racismo: a verdade que seu tio não vai te contar no Zap da família

Pesquisas recentes mostram que o Brasil começa a se enxergar como um país racista, mas ainda tem dificuldade de identificar ações de racismo. Por outro lado, as recentes notícias sobre a polícia baiana e a operação vingança no Guarujá gritam na cara de todos como e onde identificar o racismo.

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Uma polícia que age por vingança já é por si só uma política medieval. Mas a questão aqui remonta a um passado bem mais recente. Um passado onde um determinado grupo de brasileiros estava disponível para serem torturados e assassinados. A verdade, é que esse passado nunca foi superado. Ao contrário, continua sendo cultivado e mantido. Quer saber como? Me acompanha…

Tem uma cena de Memórias Póstumas, do bom e velho Machado de Assis, que me impressionou muito quando li pela primeira vez, ainda adolescente. No capítulo LXVIII, O Vergalho, Cubas caminhava pelas proximidades do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, quando é interrompido em seus pensamentos pelo burburinho de uma aglomeração. Ao se aproximar, constata: “era um preto que vergalhava outro na praça”.  A cena da ficção de Machado representa o mesmo tipo de práticas fundadoras da estrutura social no Brasil revelada em diversas pinturas do século XIX. Uma delas, uma aquarela de 1822 do pintor australiano Augustus Earle, encena mais um episódio de punição por meio de tortura pública, sob o olhar do senhor. O braço erguido, o chicote voando em direção ao corpo nu e ferido da vítima, o feitor acompanhando de perto a ação.

Pintura de Augustus Earle, Calabouço do Morro do Castelo, Rio de Janeiro. Um homem negro chicoteando outro, feitor observando, pessoas em redor.

Um problema contemporâneo

É lugar comum repetir, como tantas outras frases dessas que as pessoas repetem sem pensar, que também existe racismo entre os negros ou que os negros é que são racistas. Existe verdade nessa colocação? É possível. Mas tem uma questão de linguagem aí. A expressão “é que”. Dependendo do contexto, serve para excluir elementos de um determinado grupo. “Futebol é que é divertido” significa que alguém não gosta tanto de outros esportes. “Nós é que somos patriotas” significa que alguém acha que determinados grupos não deveriam fazer parte da nação. E o que isso tem a ver com a pintura e o livro citados? Saiu uma pesquisa recentemente sobre a percepção das pessoas a respeito do racismo no Brasil. O que impressiona sobre essa pesquisa é uma estranha contradição. Enquanto 81% das pessoas concordam que o Brasil é um país racista, apenas 11% identificam racismo em suas próprias atitudes ou em suas famílias. Quer dizer, 89% das pessoas não enxergam onde e de que formas o racismo se manifesta. Seja por desconhecimento ou por maldade – não sou eu que vou julgar, afinal 89% é muita gente – parece que as pessoas já não veem o Brasil como um país livre de racismo, mas ainda não sabem como identificá-lo.

Se era possível ter alguma dúvida de que o racismo é um problema atual, os últimos anos deixaram as coisas bem claras. O crescimento da extrema direita pelo mundo fez muita gente perder qualquer resquício de vergonha ou medo de expressar sentimentos racistas. O lado bom é que aquela hipocrisia de chamar de brincadeirinha, gozação, camaradagem o que na verdade é agressão, ofensa e exclusão racial tem ficado cada vez mais evidente. Por outro lado, muitas pessoas de fato não sabem exatamente como e onde o racismo se manifesta. Como aquelas práticas tão antigas retratadas no livro e na pintura ainda hoje moldam atitudes, palavras e pensamentos. E onde, muito além da relação interpessoal, podemos encontrá-las. Nesta série de vídeos vamos descobrir onde encontrar o racismo com exemplos práticos para ficar bem claro como se manifesta essa cultura que só traz prejuízos. Principalmente para os grupos que são suas vítimas, mas não apenas para eles, para o país como um todo que sofre também as consequências de manter sua população à margem da cidadania e de se manter à margem do mundo.

Um sistema que se diz neutro

Casa Grande com estruturas à mostra.

É comum as pessoas pensarem sobre o racismo como um desentendimento entre as pessoas. Ou como uma ofensa, um xingamento pessoal. Em muitos casos são pessoas que sequer têm uma relação de autoridade ou de poder tão discrepante, como na pintura. São “gente como a gente”, como se diz. Outras vezes é um personagem de televisão que faz uma gozação, coisa muito comum até poucos anos atrás. Alguns casos mais recentes envolvem torcedores insultando jogadores negros. Fiz um vídeo sobre o Vini Jr, depois confere na página inicial. Eles têm razão em pensar dessa forma, a ofensa pessoal é uma forma de manifestação e as relações interpessoais são um meio importante onde se expressam sentimentos racistas. Tanto é, que o mimimi da década sobre isso é a rejeição a tudo que cheire a politicamente correto.

Mas a coisa vai muito além do âmbito pessoal. Atos de agressão são tolerados porque são compreendidos pelas pessoas não apenas como incidentes interpessoais, mas aleatórios e arbitrários, sem maiores consequências. Como um pequeno desvio de conduta dentro de um sistema supostamente justo e neutro. A sociedade moderna é construída por leis que garantem a igualdade entre as pessoas, mas – infelizmente – acima da lei existe o poder. Isso não é novidade para ninguém e como dizem nossos hermanos: “A justiça é como a serpente, só morde os descalços”. E é justamente a dificuldade de enxergar conexão histórica entre fatos aparentemente ao acaso que constrói a ideia de que não existe essa conexão. Da mesma forma, a dificuldade de ver as vigas e pilares por trás do reboco e do acabamento faz parecer que está na superfície o que, na verdade, é estrutura, tem lastro no passado e forte sustentação no presente. Mas se a gente tenta enxergar por trás do acabamento de igualdade, vamos ver que a suposta neutralidade é um mito e que o sistema que deveria ser justo – e é muitas vezes justo no papel – na prática seleciona pessoas e as separa entre cidadão e não-cidadão de acordo com os mesmos critérios do passado.

O intermediário do poder

Depois de constatar que o homem que torturava outro homem em praça pública era um de seus ex-escravos, Cubas ensaia uma explicação: “Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas – transmitindo-as a outro”. É possível. Por vingança ou por encontrar alguém colocado em situação de maior vulnerabilidade que a sua. Um ato isolado, sem conexões que vão além do ressentimento íntimo de um indivíduo. Porém, ser libertado pelo senhor o coloca em uma situação de poder, embora ainda dentro do sistema criado pelo senhor. Uma relação de poder que convém ao senhor.

Brás Cubas e Prudêncio, personagens de Machado de Assis em estilo quadrinhos.

Gilberto Freyre, racista de carteirinha, achava que o mulato era a prova do amor entre as raças que ele jurava que existe no Brasil. Freyre é o maior responsável pela difusão do mito da democracia racial brasileira. A falsa ideia, repetida até hoje, de que um país desigual como o Brasil, cujas desigualdades são facilmente visualizadas de acordo com o tom da pele, é um país racialmente justo. Para ele, o mestiço é o elemento que dá equilíbrio a essa sociedade justa e igualitária, a engrenagem responsável por balancear e suavizar o antagonismo racial. E é mesmo, mas não do jeito que ele queria. Não como uma relação de amor fraterno. Conceder poder a intermediários é uma forma de se manter no poder.

A pintura retrata uma cena que se passa no Calabouço do Castelo, prisão que existia no forte do antigo Morro do Castelo, no Rio de Janeiro. O Morro do Castelo abrigava as primeiras edificações portuguesas construídas no Rio de Janeiro ainda em mil quinhentos e tal, os mais importantes eram um convento e uma fortificação que ficou conhecido como Castelo e deu nome ao lugar. Além de muitos outros lugares históricos, como a casa onde viveu Machado de Assis, e de uma densa população majoritariamente formada por negros e pardos, o que era comum no Centro do Rio até então. O Morro do Castelo e toda a sua história existiram até o início do século 20, quando foi demolido pelo prefeito Pereira Passos no projeto higienizador que deu origem às primeiras favelas. Mas peraí, o que foi demolido? O convento, o forte, a casa de Machado de Assis? Não, o morro inteiro foi varrido a jato d’água e virou aterro.

Que força tão imensa faz a elite de uma população mover as montanhas de uma cidade e enterrá-la com todos os escombros de sua história? E aí, juntando as ideias de intermediários do poder e montanhas, me ocorre um outro lugar comum: “a polícia brasileira é incorrigível, é impossível, ninguém consegue consertar”. Os grupos detentores de poder, quando interessa, são capazes de mover montanhas e soterrá-las com todas as suas conexões históricas. Se não o fazem é porque têm interesse em manter a estrutura por eles construída como está. A cena se passa no Castelo e a relação que se impõe entre esses dois homens e entre eles e o poder representado pelo feitor, muito bem capturada na troca de olhares entre eles, se perpetua até hoje. O poder, o escravo e o intermediário. E seria ingenuidade – ou seria conveniente? – acreditar que sua repetição contínua no passado teve natureza racial, mas hoje não passa de acaso, coincidência, arbitrariedade. Relações de poder não são obras do acaso.

O sistema de castas virtuais

O fim do regime escravocrata marca também o fim, mais uma vez na forma da lei, do sistema de castas no Brasil. Um sistema de castas é aquele em que as pessoas não têm mobilidade social. Se um indivíduo pertence a uma casta, vai estar condenado a desempenhar as atividades que são permitidas – ou obrigatórias – para a sua casta. Não têm o direito de escolher seus próprios destinos, sua profissão, suas atividades. Seus descendentes estão condenados a esta mesma prisão.

O Apartheid na África do Sul e as leis Jim Crow nos Estados Unidos foram formas explícitas de tentar manter este sistema após o fim da escravidão. Mas não foram as únicas e, para falar a verdade, não foi uma estratégia muito boa, em pleno século XX, separar as pessoas com base na lei. Muito mais eficiente foi, e continua sendo, a estratégia adotada pelas elites econômicas brasileiras que vêm garantindo imobilidade social às massas por meio de desigualdade cultural, econômica e de acesso aos meios e recursos que possibilitariam sua ascensão. “Ah, mas isso é só uma questão de esforço individual”.

Esses grupos sofreram e ainda sofrem com a escravidão, migração forçada, dizimação, negação de acesso a recursos básicos tanto materiais quanto imateriais, marginalização geográfica e social entre muitas outras violências. Em contrapartida, os imigrantes que vieram para o Brasil sob o pretexto de substituir o trabalho negro – o que por si só já um absurdo – tiveram preferência nos postos de trabalho, acesso à educação, acesso a laços sociais na classe média que permitem abrir portas, enfim… Mais uma vez, se coloca na lei a suposta igualdade, mas, na prática, o que as elites econômicas fazem é garantir direitos e privilégios a grupos selecionados pelos mesmos critérios do tempo da escravidão. Além de garantir que qualquer tentativa de sair dessa condição de casta velada seja devidamente reprimida.

Imagens de violência racial do passado e do presente.

A minha pergunta para os 89% que não enxergam o racismo é: que explicação elas dão para esse fenômeno? Se não são as desigualdades causadas e sustentadas pelas elites econômicas e seus intermediários, qual é a sua explicação para o fato de a grande maioria das pessoas marginalizadas em castas não oficiais brasileiras serem descendentes de africanos e indígenas? Eles são incapazes, inferiores?

A morte no horizonte

Se a gente traz de volta a imagem do Calabouço – o escravo, o intermediário e o poder – como um paradigma de sociedade, mas agora em termos de mobilidade social, em termos da manutenção do desejo das elites econômicas de manter grupos inteiros presos em castas virtuais, quem seria o atual intermediário do poder? A classe política, talvez. Pode parecer que eles são o poder em si, e muitas vezes são mesmo, mas em sua grande maioria não passam de intermediários dos verdadeiros acumuladores de poder econômico que são gente muito mais rica e poderosa. Mas é também o cidadão comum que vota e revota nos mesmos representantes desta elite – e isso não é um fenômeno recente, é muito anterior ao bolsonarismo. Não importa a cor da pele, ser autorizado a exercer poder por quem de fato detém poder é sedutor. Mas quando se trata dos objetivos por trás desse esquema, aí sim pele é essencial…

Ver a classe política como intermediários do poder pode ser problemático. O coitado que ganha um chicote para açoitar seu irmão é parte da mesma ralé que ele castiga, já os políticos, não. A polícia, por outro lado, sim, é parte dessa ralé. E fica bem clara essa relação quando se pensa na polícia nesta posição e nas muitas chacinas cometidas no Brasil, outro problema enfrentado pela gente pobre – quase todos pretos ou quase pretos. A morte está sempre muito mais próxima e muito mais presente nas vidas dessas pessoas do que para os verdadeiros cidadãos. Basta ver as estatísticas de encarceramento e morte no Brasil. Vão dizer que eles vão mais para a cadeia porque cometem mais crimes. Mas aí eu volto à pergunta anterior, se cometem mais crimes é porque vivem à margem da sociedade, sem os direitos e vantagens dos efetivamente cidadãos, situação que é construída e sustentada pelas elites econômicas. Se não é por isso, qual é a explicação para a maior criminalidade, encarceramento e morte entre os negros? Se tiverem alguma resposta que não envolva a falsa relação de superioridade e inferioridade entre as pessoas me avisem.

Montagem em que o feitor do quadro de Earle veste um terno moderno e o carrasco usa uniforme da PM.

O racismo é um sentimento e opera no íntimo de cada pessoa. Mas é também uma ferramenta de manipulação. Se vem sendo estimulado ao longo dos séculos é por seu potencial na manutenção das estruturas de poder. As elites que movem montanhas, tiram e botam presidentes, têm poder para manter sob controle as instituições necessárias à manutenção do seu poder e uma dessas instituições é o teatro. É necessário manter essa ilusão de que somos um povo incompetente, de que somos todos uma raça inferior – coisa que já não se falava mais tão abertamente até pouco tempo atrás – para que eles se mantenham no poder. Conferir poder a uma casta de intermediários entre o senhor e o escravo é uma ferramenta, não é mero acaso. Mas não é o único elemento neste cenário.  É necessário manter a ilusão do teatro, o mito da democracia racial em que todos são iguais e se não estão em uma situação melhor isso é fruto apenas de suas próprias ações. E isso é só o começo, fica ligado nos próximos vídeos para descobrir a verdade sobre o racismo no Brasil.

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Racismo estrutural e os intermediários do poder (2/3)

Por que é difícil entender o racismo estrutural? Existe uma barreira de negação, é claro. Muita gente reluta em aceitar uma realidade difícil. E existe também um clima de acusação, como se a culpa de erros do passado caísse sobre as pessoas hoje. Clima que se fecha ainda mais em tempos de polarização como os atuais. Mas negação não é o mesmo que incompreensão. Como se pode compreender essa ideia?

Lembro que tive dificuldade de assimilar a ideia de evolução na teoria das espécies. Sentia falta de um modelo de a ser seguido. Como um projeto de espécie que sirva de meta. E isso ao mesmo tempo é o que há de mais bonito no darwinismo: ele parte do caos absoluto, da mais completa ausência de objetivo que é o cosmos.

É porque os conceitos de Darwin se chocam com uma das características mais interessantes da mente humana. Característica que dá forma ao nosso modo de pensar. Aquilo que nos diferencia das demais espécies, ou seja, a capacidade potencializada de planejar um futuro, e então construí-lo.

Habilidades e habilidades

Não que o darwinismo seja ruim ou que nossa habilidade seja limitante. São apenas incompatíveis ou contraditórias entre si. A espécie X adquiriu a característica y para se adaptar à mudança z. Esse tipo de explicação sempre me soou estranha. Parece que viu as transformações no ambiente e resolveu planejar umas mudanças em sua vida. É fácil transformar o darwinismo em uma espécie de planejamento.

É que a aptidão que nos caracteriza e nos permite arquitetar e realizar coisas que vão desde um fim de semana na praia depois da pandemia até o Taj Mahal ou o Plano Piloto, bate de frente com uma outra característica da mente humana – uma incapacidade, neste caso.

O tamanho da habilidade que temos para planejar o futuro, é igual à dificuldade que encontramos em conectar eventos distantes em série, só que na direção oposta. Fazer conexões de causa e efeito ou de continuidade em séries longas através da história não é nosso forte. Tem uma série de vídeos no canal do biólogo Pirula no YouTube onde ele fala sobre essa coisa da mente descontínua e sobre evolução em geral. É basicamente o conflito da dificuldade em enxergar processos com a tendência a “ver” coisas prontas.

De volta ao racismo estrutural na cultura…

Mas eu não sou biólogo – se eu tiver falado muita bobagem, biólogos, por favor me corrijam. O tema do artigo é racismo estrutural na cultura brasileira. Apenas me parece que essa dificuldade com continuidade em séries longas ajuda a compreender por que é difícil pensar, entender e demonstrar o racismo na estrutura cultural, ou seja, como esse conjunto de crenças e hábitos coletivos se adaptam e se transformam ao longo da história, perpetuando-se como uma coisa natural.

Digo natural não no sentido biológico, mas, como mencionado no artigo anterior, no exemplo que dei sobre crianças de rua, como uma coisa tão corriqueira e insignificante que ninguém nota. Não gera nenhum tipo de emoção ou reação. É como ver o congresso de representantes do povo e sequer se dar conta de que eles são em sua maioria esmagadora homens brancos ou estão a serviço desses; aquilo que faz com que as pessoas nem mesmo se deem conta de que isso precisa ser questionado.

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Atacado e varejo

Enfim… Um bom lugar para pensar sobre todas essas coisas são as favelas, quebradas e periferias em geral.

Uma favela não é um lugar de miséria absoluta. Existem classes dentro de comunidades marginalizadas também. Há os mais pobres e desprovidos de condições materiais e há também aqueles que estão mais próximos das classes médias baixas do “asfalto”.

Existem comerciantes, donos de bares, vendas. Há também prestadores autônomos de serviços de transporte, como motobóis e motoristas de lotada. E além desses que vivem e trabalham em suas comunidades, existe uma multidão de trabalhadores assalariados, subempregados e informais que cruzam a cidade para ganhar a vida.

Mas a classe que circula a maior quantidade de dinheiro nas periferias brasileiras é aquela conhecida como traficantes de drogas. (Não vamos falar sobre milicianos aqui por uma questão de foco.) Digo “conhecida como” não porque não sejam traficantes ou porque queira aliviar a barra deles. Mas porque esse nome, traficante, atribuído a pequenos distribuidores de drogas, é em si uma forma de manter ocultas – ou de fazer silêncio sobre relações de poder muito maiores.

Farinhas e farinhas

Não dar nome à classe dos que realmente produzem e importam/exportam drogas ilícitas (o mesmo se aplica às armas), ou fazer parecer que é tudo uma coisa só, é conveniente para muita gente.

O criminoso que vende drogas no varejo em uma periferia é bem diferente do que comercializa grandes quantidades de drogas, gerencia essa logística desde seus escritórios – muitas vezes em instituições públicas – e as transportam em seus helicópteros particulares, para lembrar de um exemplo recente.

Notícias sobre tráfico de armas
Racismo estrutural: notícias de jornais que mostram o envolvimento das forças armadas e da polícia no fornecimento de armas para os traficantes varejistas nas favelas.

Ambos são parte da estrutura social racializada em que vivemos. Mas são os últimos que detêm o poder de fazer e manter as coisas como elas são. São funções sociais diferentes e precisariam receber nomes diferentes para que sejam vistas, percebidas, diferenciadas. E para que não sejam, ao contrário, “passadas” todas juntas em um só pacote como se fossem farinha do mesmo saco.

Traficantes de colarinho branco e traficantes varejistas ocupam posições diametralmente opostas na sociedade, embora mantenham relações de interesse.

Papéis sociais e racismo estrutural

O fato é que sob a pressão das necessidades e atividades diárias, as pessoas vão se acomodando a seus papéis na sociedade. Hoje e em qualquer época. E é justo que se acomodem, tanto quanto é compreensível que percam a perspectiva do conjunto de determinações históricas que criaram não apenas as condições necessárias para que elas ocupem estes postos sociais, mas também as próprias posições.

O espaço ocupado pelo carrasco do primeiro artigo da série sobre racismo estrutural é uma dessas posições. É um espaço vazio que precisava ser preenchido. As posições sociais são como um conjunto de determinações que une as necessidades da gente comum às dos grupos de poder; um vão dinâmico a ser ocupado, uma posição de poder de empréstimo.

Outra dessas posições criadas/ocupadas pelas forças sociais no Brasil escravocrata eram os escravos de ganho. Escravos de ganho ou pretos ganhadores eram seres humanos obrigados à condição e a trabalhos de natureza escrava, de um modo geral atuando em áreas urbanas e que costumavam vender coisas ou prestar pequenos serviços pelas ruas da cidade para ganhar algum dinheiro.

Mas o lucro resultante do seu trabalho, é claro, não pertencia a eles. Na condição de propriedade, o dinheiro que ganhavam pertencia igualmente aos seres humanos que se acreditavam seus proprietários. Ou seja, o ganho dos ganhadores é um engodo, tinha dono.

Mas certamente era permitido tirar uma parcela pequena para uso pessoal, o que representa um pequeno ganho para pessoas extremamente necessitadas e um ganho enorme, muito maior que a renda de ambulantes, para seus senhores: mais uma vez, a criação de uma casta de intermediários do poder.

O que querem os deuses?

Gilberto Freyre se refere às mulheres que desenvolviam este tipo de atividade como “pretas boceteiras”. É claro que ele não cunhou essa expressão, é provável que a tenha escutado desde criancinha.

Um aparte: na Argentina é comum se referir à genitália feminina como caja, caixa em espanhol. A palavra boceta hoje, no Brasil, tem apenas um significado, mas se você for ao dicionário, vai ver que existiu um outro. É que essa palavra originalmente significava – adivinha! – caixa, estojo.

E sua origem, segundo o Houaiss, remonta à mesma palavra em latim (bŭxis, buxĭdis) que originou também o termo inglês para caixa: box. Se algum linguista estiver lendo, por favor comente. Mas o próprio dicionário faz a conexão direta com o mito grego da Caixa de Pandora .

E não dá para não conectar também com a disponibilidade sexual à qual eram submetidas as mulheres africanas e suas descendentes. Disponibilidade que não ocorre hoje da mesma forma que outrora, mas que persiste em diversos discursos culturais. Enfim, elas poderiam ter sido chamadas de pretas caixeiras, como eram conhecidos os homens vendedores ambulantes antigamente. Mas por que não mobilizar a estrutura uma vez mais?

De todo modo, ganhadores, caixeiros e boceteiras nos ligam diretamente aos camelôs de hoje pela semelhança da atividade. No entanto, camelôs não ganham nada para seus senhores. São apenas subempregados. Quem serão então os ganhadores atuais ?

O teatro dos inocentes

“Ah, então a culpa é deles! Quem mandou vender drogas?” Os seres humanos fazem coisas boas e coisas ruins em qualquer classe ou grupo social. A questão aqui é sobre as funções ocupadas pelos diferentes grupos sociais e sobre que grupos têm o poder de manipular as coisas. Mas principalmente sobre os mitos criados a respeito disso para manter as coisas ocultas. Quem tem realmente poder de mover as coisas, de produzir e transportar grandes quantidades de drogas e armas sem ser incomodado? Quem pode manter os grupos sociais “nos seus devidos lugares”?

Todos os dias vemos nos jornais as notícias do teatro do combate ao tráfico de drogas. A polícia sobe um morro, troca tiros, mata e prende um monte de gente, enche os presídios de criminosos – “quase todos pretos ou quase pretos” – e recheia os jornais com os contos sobre o combate ao tráfico.

Sempre em movimento…

Não sei quanto a vocês, mas a impressão que me deixavam essas histórias era que “os políticos estão sempre muito preocupados em roubar mais e mais para ter cada vez mais dinheiro; eles não querem saber de problemas sociais, têm interesse em manter a miséria e a ignorância para conseguirem mais votos; e a única conclusão é que tráfico e violência são apenas uma consequência do descaso”.

Bom, eu deixei de pensar assim faz tempo. Por dois motivos simples. Primeiro, eu não acredito em descaso. Essa é a segunda das grandes mentiras que se conta sobre políticos diariamente nos grandes jornais. Ninguém chega e se mantém em postos tão altos com displicência. As coisas são como são porque interessa a alguém que elas sejam assim.

E o segundo grande mito diário: políticos só querem saber de dinheiro. Políticos não têm interesse em dinheiro. Já podem ficar chocados! Dinheiro é apenas um meio. Isso é o mesmo que dizer que mecânicos só querem saber de ferramentas, quando na verdade o que eles querem é manter as máquinas em movimento.

Paredes culturais

Racismo – tanto quanto machismo ou outras formas de discriminação por gênero, orientação sexual, origem etc. – são construções culturais, não se trata de nenhum tipo de predisposição por parte de qualquer grupo.

São ideias e práticas que vêm se repetindo ao longo do tempo. Nenhum traficante de escravos do século 17 planejou a disposição das relações de forças como elas ocorrem hoje no Brasil. São apenas ideias que vêm se transformando com as novas demandas do meio. E essas construções não têm paredes de areia. São sólidas e tem muita gente poderosa que tem interesse em manter as coisas como são.

O problema não são negros, índios, mestiços, paraíbas, suburbanos ou qualquer grupo de não-brancos. Uma raça de alienígenas poderia ter caído na Terra e estaria ocupando o mesmo lugar – ou o oposto. O problema são as construções culturais, estruturas racializadas que aprisionam as pessoas em seus devidos lugares por séculos.

E no Brasil essas estruturas não vêm do cosmos. Vêm de nossas práticas raciais históricas. Vêm sendo forjadas ao longo dos séculos. São práticas e ideias que vêm se adaptando e sobrevivendo às mudanças do ambiente. E uma de suas estratégias de sobrevivência é ficar quase invisível.

Uma classe de indesejáveis

Dizem que a única raça que existe além do Homo sapiens é a Raça Rubro Negra. Dizem também que racismo não existe: “bobagem, nós somos gente boa”. E têm razão! Pelo menos nesse ponto. Eu também acredito que no convívio entre as pessoas exista amizade, camaradagem, solidariedade.

Mas existem grupos sociais que têm estado historicamente em situação muito mais desvantajosa. E isso não acontece por desleixo. Ao longo da história brasileira pós-abolição o país passou por algumas tentativas de purificação ou branqueamento. Eliminação racial, eugenia, racismo científico mesmo. O mesmo que levou a Alemanha ao nazismo.

Apesar de aparecerem disfarçados com outros nomes ou modificados em alguns pontos, foram planejados pelas elites política e econômica brasileiras. São ideias construídas e não estar consciente disso é uma forma de perpetuar suas consequências na sociedade. Toda a estrutura social está mobilizada para esse fim. Uma parcela enorme das pessoas é mantida à margem da sociedade e as consequências disso a longo prazo são evidentes. Não é possível encontrar soluções quando mais da metade da população está excluída delas.

Finalizando

Pandora recebeu dos deuses uma caixa contendo nada mais nada menos que todos os males do mundo. Não podia abrir de forma alguma, ordenaram os deuses, sob pena de ser responsabilizada pelas consequências terríveis da disseminação dos males.

Minha caixa, minhas regras
Minha caixa, minhas regras.

Quem é que aguenta receber presente e não abrir? E dos deuses! Por que deu então o presente se não era para abrir? Resposta: porque era para abrir! E ela abriu bem rapidinho.

As pessoas ocupam suas posições e encenam seus papéis nesse teatro. Pandora tinha sido avisada sobre o conteúdo da caixa no momento mesmo da entrega. Ela só não sabia de alguns detalhes. Não sabia do teatro no qual foi escalada, da conveniência de sua participação e principalmente sobre para quem isso era conveniente. Ou sabia e viu alguma vantagem imediata nisso?

De nossa parte, ninguém garante que exista um processo de descendência direta do escravo de ganho para o traficante varejista. Isso é uma generalização. Trata-se apenas da reutilização histórica de uma ideia. Ideia que pode se aplicar a muitas outras relações entre escravos e senhores: utilização da força de trabalho intermediário, em troca de pouco, visando a perpetuação da relação de escravidão. São apenas os meninos abrindo a caixa que ganharam. Apenas uma pequena vantagem em troca de fazer a vontade dos deuses.

Comentem, compartilhem e não esqueçam de dar uma olhada nos dois outros artigos da série aqui e aqui. E não deixem de assinar nossa mala!


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