Racismo estrutural e os intermediários do poder (2/3)

Por que é difícil entender o racismo estrutural? Existe uma barreira de negação, é claro. Muita gente reluta em aceitar uma realidade difícil. E existe também um clima de acusação, como se a culpa de erros do passado caísse sobre as pessoas hoje. Clima que se fecha ainda mais em tempos de polarização como os atuais. Mas negação não é o mesmo que incompreensão. Como se pode compreender essa ideia?

Lembro que tive dificuldade de assimilar a ideia de evolução na teoria das espécies. Sentia falta de um modelo de a ser seguido. Como um projeto de espécie que sirva de meta. E isso ao mesmo tempo é o que há de mais bonito no darwinismo: ele parte do caos absoluto, da mais completa ausência de objetivo que é o cosmos.

É porque os conceitos de Darwin se chocam com uma das características mais interessantes da mente humana. Característica que dá forma ao nosso modo de pensar. Aquilo que nos diferencia das demais espécies, ou seja, a capacidade potencializada de planejar um futuro, e então construí-lo.

Habilidades e habilidades

Não que o darwinismo seja ruim ou que nossa habilidade seja limitante. São apenas incompatíveis ou contraditórias entre si. A espécie X adquiriu a característica y para se adaptar à mudança z. Esse tipo de explicação sempre me soou estranha. Parece que viu as transformações no ambiente e resolveu planejar umas mudanças em sua vida. É fácil transformar o darwinismo em uma espécie de planejamento.

É que a aptidão que nos caracteriza e nos permite arquitetar e realizar coisas que vão desde um fim de semana na praia depois da pandemia até o Taj Mahal ou o Plano Piloto, bate de frente com uma outra característica da mente humana – uma incapacidade, neste caso.

O tamanho da habilidade que temos para planejar o futuro, é igual à dificuldade que encontramos em conectar eventos distantes em série, só que na direção oposta. Fazer conexões de causa e efeito ou de continuidade em séries longas através da história não é nosso forte. Tem uma série de vídeos no canal do biólogo Pirula no YouTube onde ele fala sobre essa coisa da mente descontínua e sobre evolução em geral. É basicamente o conflito da dificuldade em enxergar processos com a tendência a “ver” coisas prontas.

De volta ao racismo estrutural na cultura…

Mas eu não sou biólogo – se eu tiver falado muita bobagem, biólogos, por favor me corrijam. O tema do artigo é racismo estrutural na cultura brasileira. Apenas me parece que essa dificuldade com continuidade em séries longas ajuda a compreender por que é difícil pensar, entender e demonstrar o racismo na estrutura cultural, ou seja, como esse conjunto de crenças e hábitos coletivos se adaptam e se transformam ao longo da história, perpetuando-se como uma coisa natural.

Digo natural não no sentido biológico, mas, como mencionado no artigo anterior, no exemplo que dei sobre crianças de rua, como uma coisa tão corriqueira e insignificante que ninguém nota. Não gera nenhum tipo de emoção ou reação. É como ver o congresso de representantes do povo e sequer se dar conta de que eles são em sua maioria esmagadora homens brancos ou estão a serviço desses; aquilo que faz com que as pessoas nem mesmo se deem conta de que isso precisa ser questionado.

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Atacado e varejo

Enfim… Um bom lugar para pensar sobre todas essas coisas são as favelas, quebradas e periferias em geral.

Uma favela não é um lugar de miséria absoluta. Existem classes dentro de comunidades marginalizadas também. Há os mais pobres e desprovidos de condições materiais e há também aqueles que estão mais próximos das classes médias baixas do “asfalto”.

Existem comerciantes, donos de bares, vendas. Há também prestadores autônomos de serviços de transporte, como motobóis e motoristas de lotada. E além desses que vivem e trabalham em suas comunidades, existe uma multidão de trabalhadores assalariados, subempregados e informais que cruzam a cidade para ganhar a vida.

Mas a classe que circula a maior quantidade de dinheiro nas periferias brasileiras é aquela conhecida como traficantes de drogas. (Não vamos falar sobre milicianos aqui por uma questão de foco.) Digo “conhecida como” não porque não sejam traficantes ou porque queira aliviar a barra deles. Mas porque esse nome, traficante, atribuído a pequenos distribuidores de drogas, é em si uma forma de manter ocultas – ou de fazer silêncio sobre relações de poder muito maiores.

Farinhas e farinhas

Não dar nome à classe dos que realmente produzem e importam/exportam drogas ilícitas (o mesmo se aplica às armas), ou fazer parecer que é tudo uma coisa só, é conveniente para muita gente.

O criminoso que vende drogas no varejo em uma periferia é bem diferente do que comercializa grandes quantidades de drogas, gerencia essa logística desde seus escritórios – muitas vezes em instituições públicas – e as transportam em seus helicópteros particulares, para lembrar de um exemplo recente.

Notícias sobre tráfico de armas
Racismo estrutural: notícias de jornais que mostram o envolvimento das forças armadas e da polícia no fornecimento de armas para os traficantes varejistas nas favelas.

Ambos são parte da estrutura social racializada em que vivemos. Mas são os últimos que detêm o poder de fazer e manter as coisas como elas são. São funções sociais diferentes e precisariam receber nomes diferentes para que sejam vistas, percebidas, diferenciadas. E para que não sejam, ao contrário, “passadas” todas juntas em um só pacote como se fossem farinha do mesmo saco.

Traficantes de colarinho branco e traficantes varejistas ocupam posições diametralmente opostas na sociedade, embora mantenham relações de interesse.

Papéis sociais e racismo estrutural

O fato é que sob a pressão das necessidades e atividades diárias, as pessoas vão se acomodando a seus papéis na sociedade. Hoje e em qualquer época. E é justo que se acomodem, tanto quanto é compreensível que percam a perspectiva do conjunto de determinações históricas que criaram não apenas as condições necessárias para que elas ocupem estes postos sociais, mas também as próprias posições.

O espaço ocupado pelo carrasco do primeiro artigo da série sobre racismo estrutural é uma dessas posições. É um espaço vazio que precisava ser preenchido. As posições sociais são como um conjunto de determinações que une as necessidades da gente comum às dos grupos de poder; um vão dinâmico a ser ocupado, uma posição de poder de empréstimo.

Outra dessas posições criadas/ocupadas pelas forças sociais no Brasil escravocrata eram os escravos de ganho. Escravos de ganho ou pretos ganhadores eram seres humanos obrigados à condição e a trabalhos de natureza escrava, de um modo geral atuando em áreas urbanas e que costumavam vender coisas ou prestar pequenos serviços pelas ruas da cidade para ganhar algum dinheiro.

Mas o lucro resultante do seu trabalho, é claro, não pertencia a eles. Na condição de propriedade, o dinheiro que ganhavam pertencia igualmente aos seres humanos que se acreditavam seus proprietários. Ou seja, o ganho dos ganhadores é um engodo, tinha dono.

Mas certamente era permitido tirar uma parcela pequena para uso pessoal, o que representa um pequeno ganho para pessoas extremamente necessitadas e um ganho enorme, muito maior que a renda de ambulantes, para seus senhores: mais uma vez, a criação de uma casta de intermediários do poder.

O que querem os deuses?

Gilberto Freyre se refere às mulheres que desenvolviam este tipo de atividade como “pretas boceteiras”. É claro que ele não cunhou essa expressão, é provável que a tenha escutado desde criancinha.

Um aparte: na Argentina é comum se referir à genitália feminina como caja, caixa em espanhol. A palavra boceta hoje, no Brasil, tem apenas um significado, mas se você for ao dicionário, vai ver que existiu um outro. É que essa palavra originalmente significava – adivinha! – caixa, estojo.

E sua origem, segundo o Houaiss, remonta à mesma palavra em latim (bŭxis, buxĭdis) que originou também o termo inglês para caixa: box. Se algum linguista estiver lendo, por favor comente. Mas o próprio dicionário faz a conexão direta com o mito grego da Caixa de Pandora .

E não dá para não conectar também com a disponibilidade sexual à qual eram submetidas as mulheres africanas e suas descendentes. Disponibilidade que não ocorre hoje da mesma forma que outrora, mas que persiste em diversos discursos culturais. Enfim, elas poderiam ter sido chamadas de pretas caixeiras, como eram conhecidos os homens vendedores ambulantes antigamente. Mas por que não mobilizar a estrutura uma vez mais?

De todo modo, ganhadores, caixeiros e boceteiras nos ligam diretamente aos camelôs de hoje pela semelhança da atividade. No entanto, camelôs não ganham nada para seus senhores. São apenas subempregados. Quem serão então os ganhadores atuais ?

O teatro dos inocentes

“Ah, então a culpa é deles! Quem mandou vender drogas?” Os seres humanos fazem coisas boas e coisas ruins em qualquer classe ou grupo social. A questão aqui é sobre as funções ocupadas pelos diferentes grupos sociais e sobre que grupos têm o poder de manipular as coisas. Mas principalmente sobre os mitos criados a respeito disso para manter as coisas ocultas. Quem tem realmente poder de mover as coisas, de produzir e transportar grandes quantidades de drogas e armas sem ser incomodado? Quem pode manter os grupos sociais “nos seus devidos lugares”?

Todos os dias vemos nos jornais as notícias do teatro do combate ao tráfico de drogas. A polícia sobe um morro, troca tiros, mata e prende um monte de gente, enche os presídios de criminosos – “quase todos pretos ou quase pretos” – e recheia os jornais com os contos sobre o combate ao tráfico.

Sempre em movimento…

Não sei quanto a vocês, mas a impressão que me deixavam essas histórias era que “os políticos estão sempre muito preocupados em roubar mais e mais para ter cada vez mais dinheiro; eles não querem saber de problemas sociais, têm interesse em manter a miséria e a ignorância para conseguirem mais votos; e a única conclusão é que tráfico e violência são apenas uma consequência do descaso”.

Bom, eu deixei de pensar assim faz tempo. Por dois motivos simples. Primeiro, eu não acredito em descaso. Essa é a segunda das grandes mentiras que se conta sobre políticos diariamente nos grandes jornais. Ninguém chega e se mantém em postos tão altos com displicência. As coisas são como são porque interessa a alguém que elas sejam assim.

E o segundo grande mito diário: políticos só querem saber de dinheiro. Políticos não têm interesse em dinheiro. Já podem ficar chocados! Dinheiro é apenas um meio. Isso é o mesmo que dizer que mecânicos só querem saber de ferramentas, quando na verdade o que eles querem é manter as máquinas em movimento.

Paredes culturais

Racismo – tanto quanto machismo ou outras formas de discriminação por gênero, orientação sexual, origem etc. – são construções culturais, não se trata de nenhum tipo de predisposição por parte de qualquer grupo.

São ideias e práticas que vêm se repetindo ao longo do tempo. Nenhum traficante de escravos do século 17 planejou a disposição das relações de forças como elas ocorrem hoje no Brasil. São apenas ideias que vêm se transformando com as novas demandas do meio. E essas construções não têm paredes de areia. São sólidas e tem muita gente poderosa que tem interesse em manter as coisas como são.

O problema não são negros, índios, mestiços, paraíbas, suburbanos ou qualquer grupo de não-brancos. Uma raça de alienígenas poderia ter caído na Terra e estaria ocupando o mesmo lugar – ou o oposto. O problema são as construções culturais, estruturas racializadas que aprisionam as pessoas em seus devidos lugares por séculos.

E no Brasil essas estruturas não vêm do cosmos. Vêm de nossas práticas raciais históricas. Vêm sendo forjadas ao longo dos séculos. São práticas e ideias que vêm se adaptando e sobrevivendo às mudanças do ambiente. E uma de suas estratégias de sobrevivência é ficar quase invisível.

Uma classe de indesejáveis

Dizem que a única raça que existe além do Homo sapiens é a Raça Rubro Negra. Dizem também que racismo não existe: “bobagem, nós somos gente boa”. E têm razão! Pelo menos nesse ponto. Eu também acredito que no convívio entre as pessoas exista amizade, camaradagem, solidariedade.

Mas existem grupos sociais que têm estado historicamente em situação muito mais desvantajosa. E isso não acontece por desleixo. Ao longo da história brasileira pós-abolição o país passou por algumas tentativas de purificação ou branqueamento. Eliminação racial, eugenia, racismo científico mesmo. O mesmo que levou a Alemanha ao nazismo.

Apesar de aparecerem disfarçados com outros nomes ou modificados em alguns pontos, foram planejados pelas elites política e econômica brasileiras. São ideias construídas e não estar consciente disso é uma forma de perpetuar suas consequências na sociedade. Toda a estrutura social está mobilizada para esse fim. Uma parcela enorme das pessoas é mantida à margem da sociedade e as consequências disso a longo prazo são evidentes. Não é possível encontrar soluções quando mais da metade da população está excluída delas.

Finalizando

Pandora recebeu dos deuses uma caixa contendo nada mais nada menos que todos os males do mundo. Não podia abrir de forma alguma, ordenaram os deuses, sob pena de ser responsabilizada pelas consequências terríveis da disseminação dos males.

Minha caixa, minhas regras
Minha caixa, minhas regras.

Quem é que aguenta receber presente e não abrir? E dos deuses! Por que deu então o presente se não era para abrir? Resposta: porque era para abrir! E ela abriu bem rapidinho.

As pessoas ocupam suas posições e encenam seus papéis nesse teatro. Pandora tinha sido avisada sobre o conteúdo da caixa no momento mesmo da entrega. Ela só não sabia de alguns detalhes. Não sabia do teatro no qual foi escalada, da conveniência de sua participação e principalmente sobre para quem isso era conveniente. Ou sabia e viu alguma vantagem imediata nisso?

De nossa parte, ninguém garante que exista um processo de descendência direta do escravo de ganho para o traficante varejista. Isso é uma generalização. Trata-se apenas da reutilização histórica de uma ideia. Ideia que pode se aplicar a muitas outras relações entre escravos e senhores: utilização da força de trabalho intermediário, em troca de pouco, visando a perpetuação da relação de escravidão. São apenas os meninos abrindo a caixa que ganharam. Apenas uma pequena vantagem em troca de fazer a vontade dos deuses.

Comentem, compartilhem e não esqueçam de dar uma olhada nos dois outros artigos da série aqui e aqui. E não deixem de assinar nossa mala!


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