Onde realmente está o racismo: a verdade que seu tio não vai te contar no Zap da família

Pesquisas recentes mostram que o Brasil começa a se enxergar como um país racista, mas ainda tem dificuldade de identificar ações de racismo. Por outro lado, as recentes notícias sobre a polícia baiana e a operação vingança no Guarujá gritam na cara de todos como e onde identificar o racismo.

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Uma polícia que age por vingança já é por si só uma política medieval. Mas a questão aqui remonta a um passado bem mais recente. Um passado onde um determinado grupo de brasileiros estava disponível para serem torturados e assassinados. A verdade, é que esse passado nunca foi superado. Ao contrário, continua sendo cultivado e mantido. Quer saber como? Me acompanha…

Tem uma cena de Memórias Póstumas, do bom e velho Machado de Assis, que me impressionou muito quando li pela primeira vez, ainda adolescente. No capítulo LXVIII, O Vergalho, Cubas caminhava pelas proximidades do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, quando é interrompido em seus pensamentos pelo burburinho de uma aglomeração. Ao se aproximar, constata: “era um preto que vergalhava outro na praça”.  A cena da ficção de Machado representa o mesmo tipo de práticas fundadoras da estrutura social no Brasil revelada em diversas pinturas do século XIX. Uma delas, uma aquarela de 1822 do pintor australiano Augustus Earle, encena mais um episódio de punição por meio de tortura pública, sob o olhar do senhor. O braço erguido, o chicote voando em direção ao corpo nu e ferido da vítima, o feitor acompanhando de perto a ação.

Pintura de Augustus Earle, Calabouço do Morro do Castelo, Rio de Janeiro. Um homem negro chicoteando outro, feitor observando, pessoas em redor.

Um problema contemporâneo

É lugar comum repetir, como tantas outras frases dessas que as pessoas repetem sem pensar, que também existe racismo entre os negros ou que os negros é que são racistas. Existe verdade nessa colocação? É possível. Mas tem uma questão de linguagem aí. A expressão “é que”. Dependendo do contexto, serve para excluir elementos de um determinado grupo. “Futebol é que é divertido” significa que alguém não gosta tanto de outros esportes. “Nós é que somos patriotas” significa que alguém acha que determinados grupos não deveriam fazer parte da nação. E o que isso tem a ver com a pintura e o livro citados? Saiu uma pesquisa recentemente sobre a percepção das pessoas a respeito do racismo no Brasil. O que impressiona sobre essa pesquisa é uma estranha contradição. Enquanto 81% das pessoas concordam que o Brasil é um país racista, apenas 11% identificam racismo em suas próprias atitudes ou em suas famílias. Quer dizer, 89% das pessoas não enxergam onde e de que formas o racismo se manifesta. Seja por desconhecimento ou por maldade – não sou eu que vou julgar, afinal 89% é muita gente – parece que as pessoas já não veem o Brasil como um país livre de racismo, mas ainda não sabem como identificá-lo.

Se era possível ter alguma dúvida de que o racismo é um problema atual, os últimos anos deixaram as coisas bem claras. O crescimento da extrema direita pelo mundo fez muita gente perder qualquer resquício de vergonha ou medo de expressar sentimentos racistas. O lado bom é que aquela hipocrisia de chamar de brincadeirinha, gozação, camaradagem o que na verdade é agressão, ofensa e exclusão racial tem ficado cada vez mais evidente. Por outro lado, muitas pessoas de fato não sabem exatamente como e onde o racismo se manifesta. Como aquelas práticas tão antigas retratadas no livro e na pintura ainda hoje moldam atitudes, palavras e pensamentos. E onde, muito além da relação interpessoal, podemos encontrá-las. Nesta série de vídeos vamos descobrir onde encontrar o racismo com exemplos práticos para ficar bem claro como se manifesta essa cultura que só traz prejuízos. Principalmente para os grupos que são suas vítimas, mas não apenas para eles, para o país como um todo que sofre também as consequências de manter sua população à margem da cidadania e de se manter à margem do mundo.

Um sistema que se diz neutro

Casa Grande com estruturas à mostra.

É comum as pessoas pensarem sobre o racismo como um desentendimento entre as pessoas. Ou como uma ofensa, um xingamento pessoal. Em muitos casos são pessoas que sequer têm uma relação de autoridade ou de poder tão discrepante, como na pintura. São “gente como a gente”, como se diz. Outras vezes é um personagem de televisão que faz uma gozação, coisa muito comum até poucos anos atrás. Alguns casos mais recentes envolvem torcedores insultando jogadores negros. Fiz um vídeo sobre o Vini Jr, depois confere na página inicial. Eles têm razão em pensar dessa forma, a ofensa pessoal é uma forma de manifestação e as relações interpessoais são um meio importante onde se expressam sentimentos racistas. Tanto é, que o mimimi da década sobre isso é a rejeição a tudo que cheire a politicamente correto.

Mas a coisa vai muito além do âmbito pessoal. Atos de agressão são tolerados porque são compreendidos pelas pessoas não apenas como incidentes interpessoais, mas aleatórios e arbitrários, sem maiores consequências. Como um pequeno desvio de conduta dentro de um sistema supostamente justo e neutro. A sociedade moderna é construída por leis que garantem a igualdade entre as pessoas, mas – infelizmente – acima da lei existe o poder. Isso não é novidade para ninguém e como dizem nossos hermanos: “A justiça é como a serpente, só morde os descalços”. E é justamente a dificuldade de enxergar conexão histórica entre fatos aparentemente ao acaso que constrói a ideia de que não existe essa conexão. Da mesma forma, a dificuldade de ver as vigas e pilares por trás do reboco e do acabamento faz parecer que está na superfície o que, na verdade, é estrutura, tem lastro no passado e forte sustentação no presente. Mas se a gente tenta enxergar por trás do acabamento de igualdade, vamos ver que a suposta neutralidade é um mito e que o sistema que deveria ser justo – e é muitas vezes justo no papel – na prática seleciona pessoas e as separa entre cidadão e não-cidadão de acordo com os mesmos critérios do passado.

O intermediário do poder

Depois de constatar que o homem que torturava outro homem em praça pública era um de seus ex-escravos, Cubas ensaia uma explicação: “Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas – transmitindo-as a outro”. É possível. Por vingança ou por encontrar alguém colocado em situação de maior vulnerabilidade que a sua. Um ato isolado, sem conexões que vão além do ressentimento íntimo de um indivíduo. Porém, ser libertado pelo senhor o coloca em uma situação de poder, embora ainda dentro do sistema criado pelo senhor. Uma relação de poder que convém ao senhor.

Brás Cubas e Prudêncio, personagens de Machado de Assis em estilo quadrinhos.

Gilberto Freyre, racista de carteirinha, achava que o mulato era a prova do amor entre as raças que ele jurava que existe no Brasil. Freyre é o maior responsável pela difusão do mito da democracia racial brasileira. A falsa ideia, repetida até hoje, de que um país desigual como o Brasil, cujas desigualdades são facilmente visualizadas de acordo com o tom da pele, é um país racialmente justo. Para ele, o mestiço é o elemento que dá equilíbrio a essa sociedade justa e igualitária, a engrenagem responsável por balancear e suavizar o antagonismo racial. E é mesmo, mas não do jeito que ele queria. Não como uma relação de amor fraterno. Conceder poder a intermediários é uma forma de se manter no poder.

A pintura retrata uma cena que se passa no Calabouço do Castelo, prisão que existia no forte do antigo Morro do Castelo, no Rio de Janeiro. O Morro do Castelo abrigava as primeiras edificações portuguesas construídas no Rio de Janeiro ainda em mil quinhentos e tal, os mais importantes eram um convento e uma fortificação que ficou conhecido como Castelo e deu nome ao lugar. Além de muitos outros lugares históricos, como a casa onde viveu Machado de Assis, e de uma densa população majoritariamente formada por negros e pardos, o que era comum no Centro do Rio até então. O Morro do Castelo e toda a sua história existiram até o início do século 20, quando foi demolido pelo prefeito Pereira Passos no projeto higienizador que deu origem às primeiras favelas. Mas peraí, o que foi demolido? O convento, o forte, a casa de Machado de Assis? Não, o morro inteiro foi varrido a jato d’água e virou aterro.

Que força tão imensa faz a elite de uma população mover as montanhas de uma cidade e enterrá-la com todos os escombros de sua história? E aí, juntando as ideias de intermediários do poder e montanhas, me ocorre um outro lugar comum: “a polícia brasileira é incorrigível, é impossível, ninguém consegue consertar”. Os grupos detentores de poder, quando interessa, são capazes de mover montanhas e soterrá-las com todas as suas conexões históricas. Se não o fazem é porque têm interesse em manter a estrutura por eles construída como está. A cena se passa no Castelo e a relação que se impõe entre esses dois homens e entre eles e o poder representado pelo feitor, muito bem capturada na troca de olhares entre eles, se perpetua até hoje. O poder, o escravo e o intermediário. E seria ingenuidade – ou seria conveniente? – acreditar que sua repetição contínua no passado teve natureza racial, mas hoje não passa de acaso, coincidência, arbitrariedade. Relações de poder não são obras do acaso.

O sistema de castas virtuais

O fim do regime escravocrata marca também o fim, mais uma vez na forma da lei, do sistema de castas no Brasil. Um sistema de castas é aquele em que as pessoas não têm mobilidade social. Se um indivíduo pertence a uma casta, vai estar condenado a desempenhar as atividades que são permitidas – ou obrigatórias – para a sua casta. Não têm o direito de escolher seus próprios destinos, sua profissão, suas atividades. Seus descendentes estão condenados a esta mesma prisão.

O Apartheid na África do Sul e as leis Jim Crow nos Estados Unidos foram formas explícitas de tentar manter este sistema após o fim da escravidão. Mas não foram as únicas e, para falar a verdade, não foi uma estratégia muito boa, em pleno século XX, separar as pessoas com base na lei. Muito mais eficiente foi, e continua sendo, a estratégia adotada pelas elites econômicas brasileiras que vêm garantindo imobilidade social às massas por meio de desigualdade cultural, econômica e de acesso aos meios e recursos que possibilitariam sua ascensão. “Ah, mas isso é só uma questão de esforço individual”.

Esses grupos sofreram e ainda sofrem com a escravidão, migração forçada, dizimação, negação de acesso a recursos básicos tanto materiais quanto imateriais, marginalização geográfica e social entre muitas outras violências. Em contrapartida, os imigrantes que vieram para o Brasil sob o pretexto de substituir o trabalho negro – o que por si só já um absurdo – tiveram preferência nos postos de trabalho, acesso à educação, acesso a laços sociais na classe média que permitem abrir portas, enfim… Mais uma vez, se coloca na lei a suposta igualdade, mas, na prática, o que as elites econômicas fazem é garantir direitos e privilégios a grupos selecionados pelos mesmos critérios do tempo da escravidão. Além de garantir que qualquer tentativa de sair dessa condição de casta velada seja devidamente reprimida.

Imagens de violência racial do passado e do presente.

A minha pergunta para os 89% que não enxergam o racismo é: que explicação elas dão para esse fenômeno? Se não são as desigualdades causadas e sustentadas pelas elites econômicas e seus intermediários, qual é a sua explicação para o fato de a grande maioria das pessoas marginalizadas em castas não oficiais brasileiras serem descendentes de africanos e indígenas? Eles são incapazes, inferiores?

A morte no horizonte

Se a gente traz de volta a imagem do Calabouço – o escravo, o intermediário e o poder – como um paradigma de sociedade, mas agora em termos de mobilidade social, em termos da manutenção do desejo das elites econômicas de manter grupos inteiros presos em castas virtuais, quem seria o atual intermediário do poder? A classe política, talvez. Pode parecer que eles são o poder em si, e muitas vezes são mesmo, mas em sua grande maioria não passam de intermediários dos verdadeiros acumuladores de poder econômico que são gente muito mais rica e poderosa. Mas é também o cidadão comum que vota e revota nos mesmos representantes desta elite – e isso não é um fenômeno recente, é muito anterior ao bolsonarismo. Não importa a cor da pele, ser autorizado a exercer poder por quem de fato detém poder é sedutor. Mas quando se trata dos objetivos por trás desse esquema, aí sim pele é essencial…

Ver a classe política como intermediários do poder pode ser problemático. O coitado que ganha um chicote para açoitar seu irmão é parte da mesma ralé que ele castiga, já os políticos, não. A polícia, por outro lado, sim, é parte dessa ralé. E fica bem clara essa relação quando se pensa na polícia nesta posição e nas muitas chacinas cometidas no Brasil, outro problema enfrentado pela gente pobre – quase todos pretos ou quase pretos. A morte está sempre muito mais próxima e muito mais presente nas vidas dessas pessoas do que para os verdadeiros cidadãos. Basta ver as estatísticas de encarceramento e morte no Brasil. Vão dizer que eles vão mais para a cadeia porque cometem mais crimes. Mas aí eu volto à pergunta anterior, se cometem mais crimes é porque vivem à margem da sociedade, sem os direitos e vantagens dos efetivamente cidadãos, situação que é construída e sustentada pelas elites econômicas. Se não é por isso, qual é a explicação para a maior criminalidade, encarceramento e morte entre os negros? Se tiverem alguma resposta que não envolva a falsa relação de superioridade e inferioridade entre as pessoas me avisem.

Montagem em que o feitor do quadro de Earle veste um terno moderno e o carrasco usa uniforme da PM.

O racismo é um sentimento e opera no íntimo de cada pessoa. Mas é também uma ferramenta de manipulação. Se vem sendo estimulado ao longo dos séculos é por seu potencial na manutenção das estruturas de poder. As elites que movem montanhas, tiram e botam presidentes, têm poder para manter sob controle as instituições necessárias à manutenção do seu poder e uma dessas instituições é o teatro. É necessário manter essa ilusão de que somos um povo incompetente, de que somos todos uma raça inferior – coisa que já não se falava mais tão abertamente até pouco tempo atrás – para que eles se mantenham no poder. Conferir poder a uma casta de intermediários entre o senhor e o escravo é uma ferramenta, não é mero acaso. Mas não é o único elemento neste cenário.  É necessário manter a ilusão do teatro, o mito da democracia racial em que todos são iguais e se não estão em uma situação melhor isso é fruto apenas de suas próprias ações. E isso é só o começo, fica ligado nos próximos vídeos para descobrir a verdade sobre o racismo no Brasil.

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Racismo estrutural e os intermediários do poder (1/3)

Tem uma cena de Memórias Póstumas, de Machado de Assis, que me impressionou muito quando li pela primeira vez, ainda adolescente, e que vai sempre me impressionar. No capítulo 68, O Vergalho, Cubas é interrompido em seus pensamentos por uma aglomeração enquanto caminhava pelas proximidades do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro. Ao se aproximar, constata: “era um preto que vergalhava outro na praça”.  

A cena da ficção de Machado, que representa o mesmo tipo de práticas fundadoras da estrutura racial da sociedade, se repete em muitas outras obras no Brasil colonial.

Uma delas, uma aquarela de 1822 do pintor australiano Augustus Earle, imagem acima, encena mais um episódio de punição por meio de tortura pública, também sob o olhar do senhor. O braço erguido em vertical, o chicote voando em direção ao corpo arregaçado da vítima, o feitor acompanhando de perto a ação.

Tá, mas isso não acontece mais

É lugar comum repetir, como tantas outras frases dessas que as pessoas repetem sem pensar, que também existe racismo entre os negros ou que os negros é que são racistas. Existe verdade nessa colocação? É possível.

Porém, as mesmas pessoas que repetem esse tipo de afirmação vão negar suas conexões históricas. Conexões que me fazem acreditar que a repetição destas frases seja tão filha das práticas escravocratas quanto a repetição dos padrões de comportamento retratados naquela pintura. Palavra e ação.

Se a frase é filha da escravidão e perpetua seu DNA, por que eu deveria acreditar que suas irmãs, as práticas escravistas, já teriam morrido?

É difícil também perceber uma outra contradição que existe nesse tipo de crença. Os mesmos sintomas que são tão nítidos e servem para denunciar o racismo em não-brancos, são invisíveis quando se está diante do espelho.

Na verdade, em ambos os casos, trata-se de relações históricas que evidenciam como as estruturas sociais naturalizadas são produzidas e reproduzidas por meio de paradigmas de comportamento que têm origem em práticas racistas e em última instância são exemplos de racismo estrutural. E essas práticas envolvem a todas as classes e pessoas.

Muita gente tem falado sobre este tema ultimamente e o livro do momento é Racismo Estrutural de Silvio Almeida, vale a pena conferir. Muita gente não gosta do nome racismo estrutural. (Eu também não. Me incomoda, essa expressão! Não sei bem por quê…) E as pessoas ainda têm dificuldade de entender o que é racismo estrutural. Nesta série de 3 artigos, vou tentar mostrar alguns exemplos.

Uma imagem repulsiva

A relação que se estabelece entre aquelas duas pessoas escravizadas não pode ser compreendida intuitivamente. A primeira emoção é de repulsão pelo carrasco. “Como ele pode fazer isso com seu próprio irmão!?”

O ser humano tende a se solidarizar com o sofrimento comum. Em situações em que há sofrimento, é comum que membros de comunidades em situação de risco se ajudem mutuamente.

Exceções vão ocorrer quando esse grupo está polarizado por alguma disputa ou quando dividido por algum outro fator externo.

Na verdade, o hábito de condenar pessoas à tortura pública, pelas mãos de outras pessoas igualmente escravizadas é muito anterior à imagem. A partir da década de 1820, muitos países americanos já estavam começando a abolir regimes escravocratas.

Não é minha intenção aqui discutir os eventos históricos que deram origem a esse tipo de prática e, na verdade, não sei se existe um evento que marque seu início. Prefiro seguir olhando as representações produzidas sobre elas.

Detalhe da pintura de Earle: relações de poder repetidas e silenciadas como base do racismo estrutural.
Detalhe da pintura de Earle: relações de poder repetidas e silenciadas como base do racismo estrutural.

A origem do silêncio

Sempre que vejo essa imagem ou lembro da cena de Machado, me pergunto como teria sido a primeira vez que ela ocorreu. E como uma cena tão contra a natureza humana pode ter se tornado tão natural.

“Você vai dar cem chibatadas no seu companheiro para mim. Se se recusar, eu te dou as cem chibatadas e você vai ter que dar duzentas nele”. Poderia ter sido assim a primeira vez? Parece verossímil, embora esse tipo de relação na realidade seja muito mais complexo.

Em todo caso, a partir daí, começa a virar hábito. Fica natural, as pessoas perdem a capacidade de se indignar. Como pode uma cena aparentemente tão chocante ficar tão natural e corriqueira quanto ver uma criança enegrecida em uma rua do centro da cidade e não ser movido por nenhum sentimento de piedade? (Até porque as pessoas têm suas vidas. Imagina o trabalho que daria pegar uma criança dessas, levar para casa, cuidar, criar junto com as suas, isso não ia dar certo!)

É doloroso pensar sobre o tema. É doloroso falar sobre o tema. Vira silêncio. Mas no dia seguinte, um ser escravizado vai ter que rasgar as costas de outro ser escravizado uma vez mais. E a chantagem do senhor também já não precisa ser repetida. Também vira silêncio. Fica apenas o hábito que se repete diariamente através dos séculos.

O poder move montanhas

A pintura retrata uma cena que se passa no Calabouço, prisão que fazia parte das fortificações existentes no hoje inexistente Morro do Castelo, no Rio de Janeiro.

Um parêntesis: que força tão grande faz a elite de um lugar mover as montanhas de uma cidade e enterrá-la com todos os escombros de sua história? O Morro do Castelo, que foi derrubado e virou aterro no Centro do Rio, abrigava a primeira edificação portuguesa construída no Rio de Janeiro em mil quinhentos e tal. E, é claro, era o lar de uma densa população de descendentes de escravos até o início do século 20.

A última vez que vi a pintura do Calabouço foi no livro Defiant Geographies: Race and Urban Space in 1920s Rio de Janeiro, da pesquisadora Lorraine Leu, no qual ela responde a essa pergunta, que tem muitas conexões com o que estou falando. Mas é uma outra história.

A cena se passa no Castelo e a relação de poder que se impõe entre esses dois homens e entre eles e o poder representado pelo feitor, muito bem capturada na troca de olhares entre eles, se perpetua até hoje. O poder, o escravo e o intermediário.

E seria ingenuidade – ou seria conveniente? – acreditar que sua repetição contínua durante o período colonial teve natureza racial, mas hoje não passa de coincidência, arbitrariedade, mera obra do acaso. Relações de poder não são obras do acaso.

Mas eu sou gente boa, só gosto de fazer umas piadas…

É comum as pessoas pensarem sobre o racismo como um desentendimento entre as pessoas. Ou como uma ofensa, um xingamento. Muitas vezes são pessoas que não tem uma relação de autoridade ou de poder tão discrepante. São “gente como a gente”, como se diz.

E o lugar comum mais recente sobre isso no Brasil é a rejeição a tudo que cheire a politicamente correto. “Não se pode dizer mais nada, é a ditadura do politicamente correto”.

Atos de agressão são tolerados porque são compreendidos pelas pessoas como fatos aleatórios, arbitrários. E quem repete esse tipo de discurso fica chato. É irritante repetir essa ladainha. As pessoas que só querem se divertir e nada mais.

É melhor não falar então. E mais uma vez o silêncio entra em cena. É justamente a dificuldade de enxergar conexão histórica entre fatos aparentemente ao acaso que constrói a ideia de que não existe a conexão. Fica parecendo que não são construções sociais, que não há nexo histórico.

A teoria de Brás Cubas

Depois de constatar que o homem que torturava outro homem em praça pública era um de seus ex-escravos, Cubas ensaia uma explicação: “Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas – transmitindo-as a outro”.

Parece razoável. Uma reação movida por ressentimento ou apenas por encontrar alguém colocado em situação de maior vulnerabilidade que a sua. Um ato isolado, sem conexões além da amargura íntima de um indivíduo.

Porém, ser libertado pelo senhor o coloca em uma situação de poder, embora ainda dentro do sistema criado pelo senhor. Uma relação de poder que convém ao senhor. E aí me ocorre um outro lugar comum: “a polícia brasileira é incorrigível, é impossível, ninguém vai consertar”.

Os grupos detentores de poder, quando querem, são capazes de mover montanhas e soterrá-las com todas as suas conexões históricas. E o sentimento racista é que motiva isso e coisas muito piores. Então, se eles não consertam a polícia é porque têm interesse em manter a estrutura por eles construída como está.

Violência, silêncio, repetição…

O desempenho de um ato de agressão não tem nada de aleatório. Só é possível representar um ato deste tipo quando os personagens já estão muito bem estabelecidos. E para que isso aconteça, a repetição seguida de silêncio é imprescindível.

Silêncio não significa necessariamente ausência de som – ou quase nunca significa. É possível haver silêncio no meio do mais ruidoso burburinho. É possível até mesmo, e muito frequente, haver silêncio em meio à gritaria mais estridente. Silêncio, em vez disso, é a própria ausência de consciência da estrutura racial que se estabelece por meio da repetição inconsciente dos atos de violência.

Silêncio é não ver o fio histórico de violência/silêncio/repetição, violência/silêncio/repetição… É ver a imagem de um policial castigando crianças, entender que ele estava “apenas cumprindo seu dever ao controlar os arruaceiros” e não enxergar que é preciso que cada pessoa desempenhe seu papel nesse teatro para que isso ocorra.

Ex-capitão da PMRJ em 2011, promovido a major meses depois de agredir crianças com borrifador de pimenta como exemplo de racismo estrutural.
Ex-capitão da PMRJ em 2011, promovido a major meses depois de agredir crianças com borrifador de pimenta como exemplo de racismo estrutural.

Quem controla quem?

É preciso não só acreditar que o policial esteja apenas cumprindo seu dever para que existam pessoas menos dignas de proteção da sociedade – “na Zona Sul eles não fazem isso”. É necessário também que o sofrimento dessas pessoas seja transparente, naturalizado pela repetição; que não cause mais qualquer consternação nas demais pessoas. E é preciso que ninguém enxergue que isso é parte de uma tecnologia maior de controle para a qual convém que as coisas sejam assim, convém manter essas pessoas como não cidadão, já que já não podem mais afirmá-las como não humanos.

Afinal, “ninguém consegue dar jeito na polícia, eles são incontroláveis”. Ainda que essa estrutura racializada não tenha sido arquitetada como um plano maquiavélico em uma dessas teorias da conspiração. São apenas papéis sociais representados diariamente. Convenientes para uns, dolorosos para outros, cuidadosamente estimulados e sustentados por quem precisa e pode manter as coisas como são.

A presença invisível

As elites que movem montanhas, tiram e botam presidentes, têm poder para manter sob controle as instituições necessárias à manutenção do seu poder. E uma dessas instituições é o teatro! É necessário manter essa ilusão de que somos um povo incompetente, de que somos todos uma raça inferior – coisa que já não se falava mais tão abertamente até pouco tempo atrás – para que eles mantenham o poder.

Conferir poder a uma casta de intermediários entre o senhor e o escravo é uma ferramenta, não é mero acaso. E se tem uma coisa mais invisível do que a dor dos não cidadãos, é a presença de uma elite que mantém as coisas como elas são.

Esse teatro tem vários atores e mitos bem visíveis mostrando suas caras no palco. O povo arruaceiro, desordeiro, nunca suficientemente evoluído para ser civilizado; a classe média superior, afinal, quem tem não-cidadãos abaixo de si tem sempre aquele ar de superioridade; a polícia que ninguém controla, mas que “sabe a hora de cumprir seu dever”; e acima de todos, regendo o concerto do caos, ah!, a classe política.

São eles que mandam no país! Mas, oh, que pena, eles são tão corruptos e não pensam em ninguém. Só que não!

Políticos são também atores nesta encenação. Corrupção e caos político também são ferramentas que pertencem a quem está puxando as cordas atrás das cortinas, a quem realmente manda. Mas isso é tema para outro debate.

Concluindo

Racismo é estrutural. O racismo é, na verdade, a estrutura. E é isso que me incomoda. A expressão racismo estrutural é um pleonasmo, uma repetição irritante. Não existem dois tipos de racismo.

A expressão racismo estrutural devia deixar de existir. Devia virar uma palavra só. Racismestrutura ou algo assim. E racismo não é uma ofensa ou um desentendimento, como uma troca de farpas. Ou não é apenas isso. Racismo não se resume a chamar um negro de negro ou um Caiapó de índio. Isto é apenas uma farpa em uma porta de um edifício cuja estrutura se funda e se aprofunda historicamente nas sociedades pós-(neo)-coloniais.

E a prova disso é que se um indivíduo não-branco, em um desentendimento, chamar um branco de branco, essa ação é tão inócua quanto chamar uma garrafa de garrafa ou uma bola de bola.

Mesmo que ele use termos um pouco mais depreciativos a farpa ainda não espeta. É preciso que toda a estrutura seja mobilizada para que palavras virem humilhações; que cada indivíduo saiba seu lugar na estrutura de poder em que está inserido para que a mera menção de uma cor vire um insulto. É preciso mais, é preciso saber encenar o seu papel.

E é difícil atuar dentro da estrutura racista sem cometer erros, mesmo estando bem intencionado. Temos que agir todos os dias. E é sempre muito tentador mobilizar esta estrutura, aceitar a sensação de poder que isso traz, e encenar uma vez mais um velho papel nesse teatro.

Comentem, compartilhem e não esqueçam de dar uma olhada nos dois outros artigos da série aqui e aqui.

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